27 setembro 2006

O ex-morto que morreu de novo - e fez a vistoria

Ansiosos, não sabíamos como seria a nossa segunda-feira. Passamos horas em reunião familiar para decidir o destino de nosso Tio Avô, há dois anos falecido, mas que fôra intimado pela justiça a realizar a vistoria de seu carro. Enfim, deveríamos levar o caixão? Ou seria melhor abri-lo e arrancar-lhe a cabeça como prova cabal de que o morto estava morto, e que era nosso parente, por isso nos encaminhávamos para a repartição pública? Aliás, creio que seria mais sutil levar um teste de dna de seus fios de cabelo juntamente com o meu, o deu meu pai e irmão, esta sim seria uma medida decisiva.

Nossa reunião de nada serviu. Chegamos ao nada, discutimos sobre o além, das trevas chegamos ao caos existente na terra até o vermelho dos olhos do carcará, mas nunca numa resolução prática para o nosso causo. Até mesmo no inferno a burocracia emperra a máquina do mundo, disse minha avó séria e convicta. Nós, entretanto, não pudemos conter o riso. Fomos às lágrimas inclusive, pois aquela situação era patética demais para realizar-se plenamente. Nosso carnaval gerou tamanha euforia que uma explosão de energia culminou de todas as frestas e cantos da sala, nossos olhos foram ofuscados e nos perdemos em delírios por alguns instantes. Quando retomamos a consciência, percebemos que o Tio Avô estava conosco novamente. A situação já era tão absurda, que nem mesmo assustados conseguimos ficar, me parece que sofremos de mais um instante de confusão, tanto é que perdemo-nos em gargalhadas e gritos, meu pai até espasmos e crises nervosas teve. Mais um momento de fervor, muito mais de loucura do que de desespero, era muita surrealidade para pouco tempo de vida. O mundo que não era mais mundo, perdera-se no labirintico emaranhado de regras ininteligíveis criadas pelas autoridades político-religiosas de nosso sempre-tempo, alheio às mínimas tendências facilitadoras do mínimo entendimento entre os homens. Inclusive a minha escrita reflete esta inoperância das criações legais da humanidade, antes delineadas com o intuito de reger de forma simples o convívio dos homens, mas detidas e aprisionadas no seio da complexa rede impenetrável de leis e ordens irreconhecíveis aos olhos do mais sábio dos homens.

Retomando o ponto, porque já basta de guerreiros do funcionalismo público. O Tio Avô ressurgiu e todos agora recompostos e devidamente sentados apenas observavam aquela criatura decrépita de pé, imóvel, branca como uma polaca, destruída pelos vermes de Brás Cubas. Dante teria receio de ater os olhos nessa figura satânica que mais provocava estranhamento e repulsa do que propriamente terror. Longo tempo fitando cada um de nós, fez com que voltasse ao mundo dos vivos, ganhasse cor, e, fundamentalmente, malícia. Percebeu nossa encruzilhada, e logo foi desatando o nó:

- Por que vocês não tiram uma xerox de mim e levam no meu lugar? Dizendo isto, desatou a rir. Nós ficamos ainda um tempo surpresos, porque não esperávamos que um morto se pronunciasse. Longe das formalidades, céu e inferno fundiram-se na terra, à frente de nós, espetáculo previsto pelos profetas, mas presenciado pela nossa família – inclusive pela nossa cadela, Juju. Como não havia mais entraves às nossas palavras, lançamo-nos a tratar dos planos mais loucos: acatamos a orientação do Tio Avô, e fomos nós xerocá-lo. Como ninguém iria perceber que aquele senhor era um ex-morto, não é necessário perder tempo com o episódio da papelaria dos portugueses perto de nossa casa. Passemos ao fim.

Como não cabíamos todos no carro, resolvi ir só. Devidamente envelopado, o Tio Avô e sua xerox permaneceram calados no banco do carona até que toda a operação da vistoria fosse concluída. Quando fechei o capô, o rapaz que realizava os serviços perguntou se eu era o proprietário. Rapidamente retirei a xerox do Tio Avô do envelope e entreguei nas mãos dele, ao passo que o Tio Avô propriamente dito permaneceu inerte no escuro do envelope pardo. Aceitando a xerox formalmente autenticada como documento oficial, logo pude me dirigir para o setor de impressão de documentos, e lá seria meu grande carnaval.

Sentados em cadeiras sem encosto espalhadas por uma sala enorme e retangular, todos os homens do mundo pareciam ter escolhido aquele dia e aquele mesmo instante para pagar todos os seus pecados. Durante dias permanecemos ali, as nádegas dormentes, as pernas formigando, uma vez que de um leve movimento toda a ordem seria transmutada em caos e desarmonia, seríamos lançados diretamente para o inferno dos documentos, onde todas as nossas pendências são armazenadas para serem na vida após a morte desnudadas.

Bom, depois de muito penar, chamou-se o nome do Tio Avô. A senhorita que me atendia no caixa de número 2 milhões e 27 até que era bonita, não era coxa como Eugênia, mas cintilavam de sua orelha bolas de cera que sujavam toda a sua branca camiseta. Não seria de se espantar, afinal de contas fazia anos os atendentes tinham naquela baia suas casas e banheiros, lavabos e dormitórios. Enfim, ela era bonita, porém mal tratada pela obviedade de sua profissão, por isso prática como a memória de um pentium moderno.

Sem intenção, provoquei uma revolução momentânea (revolução no sentido lato da palavra, conceito de transformação absoluta que nunca ocorreu na história humana). Ao dizer que aquele senhor era meu Tio, e tio avô, senti a febre nos olhos da menina, inapta a realizar tal operação, temerosa por ser obrigada a recorrer à sua superiora, bruxa assumida, tanto é que viajou no tempo, lá da inquisição para profanar os homens (pós) modernos e acabou sendo catequizada pelo pragmatismo das instituições citadinas de nosso tempo. Tornou-se uma máquina deveras engajada e dedicada, que faria inveja a Chaplin. Sequer foi preciso respirar para responder à pergunta da menina-confusa, sem titubear gritou que a xerox é o homem, não precisamos de nada mais.

E assim o documento foi impresso, a vistoria realizada e o carro legalizado.Tio Avô voltou para o além dos mortos que não sabemos se é além ou ali, ou se é lá ou no nunca, no tempo sem tempo, na eternidade do nosso sonho de conhecer o que sabemos ser inatingível. A xerox substitui o homem, esteja ele morto ou doente, sadio ou moribundo; se traveste de homem, para assim poder sair à noite para viver a libertinagem do reino dos homens.

06 setembro 2006

Encontro comigo-no-outro

As palavras assumem caráter mítico conforme a inspiração que as elevem ao divino. Vê-las no infinito da significação é construir no intestino o outro que te subverte à condição de homem. Se o objeto é motivo de afetos, das palavras extraimos a seiva, o mel, o leite e o vinho de Baco, somente descobertos no encontro com as ninfas, mulheres que vivem da liberdade suprema. As palavras são as bacantes: mas só assumem esse caráter a partir de suas predecessoras, figuras destinadas ao encontro com os homens para guiá-los ao saber e a sensibilidade, que por sua vez, dependem da feminilidade do ser que os orienta. Baudelaire diz que elas fecundam o conhecimento. Digo que elas fecundam a arte. Mas tratar delas no signicado amplo é humnizar o oráculo de Delfos. Sua figura é o híbrido das Bacantes, com Hera e Agustina: dos deuses, à deusa, à mulher. Telúrico é Torga, porque da Mãe-Terra semeamos o mundo, criamos os homens e os mitos. Face à realidade, tudo se torna encantador aos olhos desta criatura. Se me reconheço enquanto homem é porque esta alma que nunca morreu, sempre existiu, mais do que platônica, além de Zeus, é que descontruiu os elos de minha figura antes rígida e insolúvel, enjaulada no saber imutável. Se penso é fruto de uma existência redescoberta pela vida no seio da simplicidade que te constitui.

Perturbação

Poesia
Espaço
Para
Descontruir
No movimento
Da desordem
A alteridade
É a ordem
Das palavras
Sem conectivos
Ver
Descrença
Melodia
Morta
Língua
Veneno
Brasa
Fogo
Cantar
Nunca
Agora
Sangue
Fealdade
Lamber
Saber
Destruir
Melodrama
Nada
De lugar-comum