03 dezembro 2009

A mulher e a casa - João Cabral de Melo Neto

Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

21 novembro 2009

Da série: pra alguns, perguntar realmente ofende.

O que você prefere ser: a cabeça da formiga ou o rabo do elefante?

15 novembro 2009

Fez

O mar buscou a faca
Cortou as ondas

O sal inteiro sangrou
O que era onda se fez espuma
E tudo se foi secando...

A pouca água que resta está vermelha
e se acabando...

02 novembro 2009

Meta Morfosis

Ainda estava atrás do muro
Onde deixou-se por certo tempo
Longo
Alguns anos

Uma voz construia desenhos poéticos
e desenvolvia princípios humanos.

Viu-se no espelho de seus símbolos.

Neste espelho,
permitiu-se ver o outro lado.

Oi!

A leitura possibilita o diálogo daqueles que estão dispostos ao encontro.
A página dos dias está aberta pronta para ser devorada.
Estas são palavras escancaradas para o convívio.

O olhar dos olhos

A paixão pode criar substantivos
onde nunca houve subtância.
Os adjetivos estão no olhar
Não na cor dos olhos.
O antes é o substantivo
Nunca os adjetivos.
Mas os olhos precisam se transformar em olhar
para ver onde ficam os substantivos.

Menina

A menina foi bordada pelo pôr do sol
Escrita com as linhas do tempo
Vista com os olhos do atlântico.

31 outubro 2009

SIM.

Será?

Cecília via o sonho:
Conversaram
mas este lhe dizia
para não acreditar
E ela pensava:
será?

Quem?

Cabral sentou numa mesa de bar
acompanhado de seu copo
Um lápis e um caderno de anotações.
Via os outros e mais ninguém.
Quem não estava lá?

Por quê?

Drummond saiu de casa
Para encontrar os amigos e conversar.
Deixava, contudo, uma parte de si.

28 outubro 2009

Descrições da vida num pedaço de papel virtual


Digam-me um sonho ou um pesadelo (ou as duas coisas)!

27 outubro 2009

Perguntar pra responder 3

Qual é a definição da palavra AMOR?

25 outubro 2009

Por que abrir a porta é tão difícil?

21 outubro 2009

O som do vento nos braços

Nos braços
os abraços
são laços
criados
pelo coração
explodindo

Perguntar para responder...

Uma pergunta:

Qual é o seu medo?

Vamos, vamos, quero respostas...

15 outubro 2009

OLHOS - PRIMEIRO ATO

Ela ouviu e veio falar, sentia-se bem, reconhecia-se. Ele aceitou, sentou e conversaram. Ela falou mais, receosa, afinal, quem era ele? Palavras medidas, à espreita, querendo dizer, mas evitando falar: o terreno era movediço, estranho, precisava de tempo.

- A exposição é sua própria morte

O mundo vive de olhos; as paredes, as portas, as ruas, os restaurantes, os carros, todos têm olhos sequiosos, porque suprem sua sede a partir das histórias alheias. Os outros vivem de estórias, mas não as deles, mas não as reais: criam, e sem criar suas existências assumem a forma de cadáveres. Precisam do elemento externo, vivem dele e para ele. Agir assim pode fazer pressupor solidariedade, comunhão, apreço e cuidado com o outro. Contudo, não abrace a causa como o absoluto divino, distancie-se, seja. Este que vive do outro é um egoísta nato, pois preenche o seu vazio vital através de falácias e experiências alheias. O que se diz não importa, mais vale é dizer, e assim a ausência compõe-se pela fantasia.

Os olhos devoram a intimidade do outro, engolem sem antes mastigarem uma única vez e deixam para o ácido estômago toda a tarefa de absorção.

E o estômago ácido, que ele é? Aqueles que ouvem as estórias, reproduzem da uma delas e ainda julgam-nas com ar superior. E ácido é ressentido. E ressentido é quem se vê no espelho pela manhã e gostaria apaixonadamente de ser outra pessoa.

- E eles (ela e ele) permanecem conversando...

04 outubro 2009

Fogo fátuo


Olhos
Pele
Carne
Sublime
Vermelho
Sangue
Calor
Sol
Vida
Suor
Ardor
Tortura
Ilha
Navio
Exploração

28 setembro 2009

Do espaço à refeição

Neste espaço onde o espaço é uma criação
Criar se torna um espaço avesso aos limites
Os limites do espaço são as limitações das escolhas
Escolhas que nos levam ao acaso
Ao acaso que nos arrebata do mesmo
E nos leva ao indefinido
Indefinido que nos cerca
E cerca para devorar.

A prostituta

Uma prostituta
é uma presença física irresistível,
um jeito animalesco de olhar,
de sentir, de querer, de tocar...

Ela representa o que todos querem
O desejo à flor da pele.

Estar

O espaço onde esteve
é o espaço onde estive
O espaço onde estou
é onde está
O espaço onde estaríamos
é onde realmente gostamos de estar.

27 setembro 2009

Uma ironia sinistra: culpa minha




Esta é uma brasileira
Na foto do jornal
sem nome

Mas o seu nome é:
Edmar Paula Mattos

Pobre
Favelada
Marginalizada
Estigmatizada
Isolada

O filho não será enterrada
Não há pão
Não há fubá

O consolo foi um tapa nas costas
E um pedido de compreensão:
Ela precisa entender o lado da polícia, diz o responsável pela ação estratégica e perfeita.

Uma morte perfeita
Uma mãe muda

O Estado mata
o cidadão morre
a família chora
E as lágrimas
dizem:
É, foi inevitável
a única alternativa.

A luz macabra

Alguns disseram:
- Deus iluminou o policial!

Deus é vida,
não é morte

Quem retirou a vida
foi um homem
Um assassino
Mas um assassino legal
Todos vibraram
Afinal
Bandido tem que morrer a bala

E continuamos reféns
de nossa ignorância
da pusilanimidade
do egoísmo
da preguiça

Por que mudar
se é mais fácil matar?

Amanhã mais um será exterminado
e todos continuarão nos bares.

O nada brasileiro

Um tiro na cabeça
Aplausos
Consagração
E liberdade
Heroísmo

Enfim
Mais um negro
brasileiro
desempregado
desesperado
desamparado
Some
como se o o nada
representasse
a nossa brasilidade

ASSASSINATO em nome da SEGURANÇA?

Duas mães, dois dramas distintos. No mesmo momento em que Ana Cristina Garrido agradecia ao major João Busnello, no sábado, Edmar Paula Mattos chorava a morte do filho. Sérgio Ferreira Pinto Júnior foi morto com um tiro disparado pelo oficial da PM sexta-feira, em Vila Isabel, quando mantinha Ana refém. Edmar, que trabalhava no dia da ação, não acompanhou os últimos minutos de vida do filho.

- Eu não queria que ele (Sérgio) tivesse morrido... Mas os policiais fizeram um ótimo trabalho - disse Ana, que recebeu a visita do major Busnello e relembrou os momentos do dia anterior:
Vídeo mostra a emoção do encontro

- Na hora do tiro, pensei que tivesse sido atingida. Corri pelo instinto. Eu lembrava muito do Caso 174, em que a refém morreu, mas pedi a Deus para sair viva. "A polícia poderia ter esperado"
Longe dali, no Engenho Novo, a mãe de Sérgio recebeu a equipe do EXTRA em casa, e também relembrou o drama de sexta. Em meio a lágrimas, suspirava:

- A polícia poderia ter esperado um pouco mais. Ele não ia detonar a granada, a índole dele não era essa - lamentou Edmar, que trabalha como doméstica.

Segundo ela, Sérgio concluiu o ensino médio e estava desempregado há três anos. Era chamado para entrevistas, mas não conseguia ser contratado:

- Ele estava desesperado, achava que tinha que me dar do bom e do melhor. A irmã de Sérgio, Karen Patrícia Mattos, de 22 anos, questionou a ação policial:
- Não precisava dar um tiro na cabeça dele.

Edmar prestou depoimento à polícia no fim da noite de sexta-feira e revelou que esteve com o filho no domingo anterior, quando ele levou a filha de 3 anos para vê-la. A família ainda tenta arrecadar dinheiro para conseguir pagar o enterro.


Saiba mais:

Coronel Príncipe pede que família do homem morto entenda a PM

Ana diz que Deus iluminou o policial



20 setembro 2009

Mulher-poesia

O mistério da poesia
Alimenta a descoberta
feminina

Mulher e poesia
Expressões de uma mesma origem
Cujo caráter dissimulam

Erotismo
Corpo que marca a forma
Mas não mostra a pele

Para chegar-lhes
aos

p
é
s

É preciso um olher
Lírico e encantado
pela aurora

Se nascer se torna
um hábito vulgar
A poesia morre
(Falece)
(Fenece)


(...)
(...)
(...)
(...) Esquece e nada diz...

Espaço dela

Só me expresso
no espaço
da poesia

Só me expresso no espaço da poesia


me
ex
presso
no
es
pa
ço
da
po
e
sia

Só me expresso no
espa
ço da po
esia

Poesia
P
o e s
ia

E foi.

A poesia do abraço

Caminhei sozinho,
mas atrelado a sua ideia
Pude beijar
E sentir
Sem temer
Dei as mãos
Recebi um abraço
E nos braços longos para a despedida
e fortes para o afeto
Deixei-me viver
Pois estou nos olhos
da poesia.

O dia e o dia

João morou em um apartamento
Quarto e sala
Banheiro pequeno
Não conheceu os vizinhos
Ia e vinha do trabalho
Sem dizer nada
Não olhava as pessoas
A cabeça pendia pra baixo
Caminhava decidido
a voltar pra casa
ou chegar ao trabalho
Não queria os outros
Até se tornar ida e vinda.

Telefone Celular

João ganhou um celular
Andava com ele pra todos os cantos
Certo dia, recebeu uma ligação
E virou um telefonema.

Redescoberta

O português chegou ao Brasil
Viu o índio
As praias
A natureza
E pensou estar no paraíso

Logo, a incredulidade
Cedeu espaço para a vontade
E o paraíso virou cidade.

Na cidade
que ainda é um pouco natureza
um brasileiro chegou
Sentou diante da noite
Viu o céu estrelado
Ouviu o mar cantarolar
Sentiu a brisa de sua voz
Ficou

A beleza era uma ideia
produzida pela percepção poética
do instante presente.

Domingo

João calçou as havaianas
Foi comprar o pão e o jornal
Voltou e fez o café fresco
Abriu a geladeira
Pegou a manteiga
O alface
O tomate
Um copo
E leite

Enquanto comia
Leu o jornal
Ouviu o gato miar
E os apartamentos vizinhos
Começando a levantar

Todos os dias se transformaram em domingos
Mas sem os domingos.

As fotos em João

João acordou
Tomou café
Cortou os pulsos
Encheu um copo
E bebeu o sangue
Ainda quente

Passaram-se dias
E o sangue escorria
Lento
Pelas pontas dos dedos

Ele queria mesmo
Não pensar.

Esteve

Um pingo de chuva.
Uma lágrima.
Néctar das flores.
Desejo dos beija-flores.
Um telefonema.
Uma lembrança.
Uma parte:
longe, alma.
perto, carne.
E assim seguimos:

carne, alma, carne, alma, carne, alma, carne, alma, carne, alma... (...) (...) (...) (...)

14 setembro 2009

Morto

Qual é a pior morte?

Uma porta se abre
Um passo apenas para atravessá-la
Segundos demorados
Olhos que se entrecruzam
A memória dilui tudo em pó
Mas permanece viva
Em turbilhão
As experiências viram imagens disformes
Tudo o que foi
Formam dias inteiros em um delírio
Pessoas, bares, lugares, bebidas,
Casas, quartos, camas, sexo,
Brigas, carinho, sentido, sensações
Horas para anos
Uma dor sem razão

Alguém se foi
Alguém morreu
Ninguém ficou.
Tudo chorou.

A morte na vida
Ou a morte da vida.

08 setembro 2009

Do prosaico

"A coisa mais fina do mundo é o sentimento", Adélia Prado.

...

O lirismo do cotidiano produz o sentimento sublime e simples.
O prosaico define a grandeza do mundo
O medo da rotina marca a realidade inventada pelos homens que esperam um grande evento.

07 setembro 2009

Copo, borracha e mesa

Comprei um copo de vidro
E pus na mesa
Comprei uma borracha
E pus na mesa
Peguei o lápis
e comecei a escrever minha biografia
Depois de um tempo
Cansei-me
Espalmei as mãos
E quebrei o copo

Não senti dor

Cacos e restos enfiados pelos ossos
tendões, unhas e veias
Tudo dilacerado

Não senti dor

Com a borracha
apaguei o que escrevia na mesa.

Madrugar pra quê?

A vida é uma eterna busca por
melodias frustradas
encantos de palavras
perversas

A escolha do dia
é a morte da tarde
é a doença do dia

No dia
de dia
Razões

À tarde a fuga
À noite a chegada
O encontro dos símbolos
Os rostos ganham contornos inacabados
Os corpos se viram em sombras
E as vozes, o murmúrio

É na madrugada que nada passa
e tudo fica

É na madrugada que a experiência
muda o jeito de ser

É na madrugada que amar faz sentido
e o sexo é prazer

É na madrugada que o trabalho do copo
vira a construção do ser

É na madrugada que a bebida se levanta
e deixa ser

É na madrugada que a noite engole o dia
pra poder viver

É na madrugada que os homens do dia morrem
porque não mudam,
seguem.

É na madrugada que os sapatos e o terno
viram motivo de sarcasmo
(indiferença)

É na madrugada que os sapatos ganham
daqueles que os calçam

É na madrugada que os espelhos se quebram
e os outros ganham vida

É na madrugada que o mendigo acorda
vive e produz

É na madrugada que o cão sarnento exala sua doença
e todos querem abraçá-la

É na madrugada que a morte ganha vida
a história é vivida
e faz parte da saída

É na madrugada que o sol se torna uma doença
Porque o seu sorriso é uma luva cirúrgica
que abre os ossos do peito
e desperta corpo da solidão.

Frases dispersas

A viagem que pensamos é aquela que deixamos.

A amor que se vai é a morte do sorriso.

O sorriso comedido é a eterna paixão.

O sorriso exagerado é uma máscara de césar no rosto do plebeu.

A imaginação move os pés de nuvem, pés que se deixam voar.

As pessoas são como os dias: vão e vem
A pessoa, no entanto, pode ficar ou não.
Nós é que dizemos: não ou sim.

As frases que dissemos
Mentem pras próprias palavras
Porque o que sentimos
precisaria sempre de novas palavras
pra dizer o que deveria.

Frases perdidas

Houve uma guerra
poucos saíram vivos dela
Muito sangue escorria pelas pernas
Muitos braços
Dedos perdidos
Pés descalços
E esfacelados
Cabeças a rolar
Mas o que é a guerra
senão a renovação?
Ela não precisa de armas
soldados
balas
tanques
generais
táticas
E do que ela precisa?
Disposição.
Sem ela,
nos desencontramos
E o desencontro é a frustração.
E você, o que quer:
a guerra
ou a frustração?

11 agosto 2009

Será?


Evolução das relações humanas
Já estive nesta casa, inclusive naquela piscina. Creio eu ter ainda encostado neste muro...
Depois de alguns anos, eis que a Fernanda Lima está na mesma casa e no mesmo muro.

Cheiro do Ralo - 1ª Parte

Ontem, resolvi observar as pessoas sentadas nos bares. Sai de casa excessivamente curioso, um tanto ressentido, alguns diriam, desocupado, outros afirmariam. Entretanto, motivou-me uma teoria: o cheiro que as pessoas exalam. Não confundam a ideia com um mero perfume comprado em free-shop, ou aqueles vagabundos que à preço de banana arranjamos vários na Uruguaiana. Refiro-me àquilo que nasce das palavras, um cheiro de restos de lixo, vagando entre o imoral e o casto, passando pelo sagrado e tocando o profano. Encurtando o caminho: chorume.

Ainda não sabia onde, mas sabia o que queria. Sem carro, fui de táxi. Pedi ao motorista que me indicasse um restaurante ou bar ou qualquer lugar onde pudesse me sentar, comer decentemente e beber uma cerveja gelada. Como resposta, um sorriso, porque minha escolha era absolutamente vaga, poderíamos parar de Duque de Caxias ao Leblon. Pois bem: disse que gostaria era de ouvir as pessoas, esconder-me nas páginas de um livro para livremente recolher suas máscaras. Outra resposta sorridente: o senhor tem problemas?

Depois desta resposta, fiquei extremamente irritado e logo pedi para levar-me ao Lamas. Não sei se ele percebeu, mas retirei meu livrinho da mala e comecei a ler. Duvido que tenha pensado na possibilidade de eu tentar minha estratégia com ele, afinal de contas, estávamos a sós no carro.

Reconheço que aos olhos do leitor minha atitude se aproxima da vida dos solitários, que andam pelas ruas, lembrando dos amores passados, das escolhas sem sucesso e, sobretudo, das atitudes que poderiam, mas não foram. Se é um engano, não cabe a mim dizer, mas digo assim mesmo: o que não é um engano para a vida do chorume?

Estive a ponto de abandonar o carro sem pagar pela corrida, mas, por um instante, um sopro de moralidade e sanidade mudou o rumo do vento que me lançava, quase à força, a entrar no bar e a ignorar que o táxi era minha responsabilidade. Quinze reais e vinte centavos, disse o motorista. Dei-lhe quinze, e virei as costas.

Senti certo remorso, mas o que é o remorso senão a prática de uma atitude social e solidária? Paguei com a mesma moeda: como não recebera, não tinha o que trocar. Atitude meramente vingativa ou seria própria?

À porta principal, Doutor Carlos me trouxera aquele largo e farto sorriso que falta, e muito, aos garçons de hoje. Você vai dizer que há exploração, por isso a atividade deles se torna mecânica e distanciada. Leu algo contrário? Se leu, creio que o sol aqueceu demais sua eloqüência ou que a bebida pode ter prejudicado o seu juízo. Beber e estar ao sol deveriam ser dois momentos complementares e produtivos.

Sentei-me em um canto, mas de onde poderia ouvir a conversa de boa parte do restaurante. As paredes espelhadas me provocavam certo acanhamento, pois me obrigava a olhar as pessoas pelas infinitas possibilidades visuais que o ambiente proporcionava. Os olhos dos outros sempre produziam temor aos meus, como se o meu segredo fosse descoberto e pudesse ser considerado solidão. Medo de ver nos olhos alheios a solidão que pode estar escondida dentro de mim, assim como em qualquer ser humano.

Uma caneca de cerveja e uns bolinhos de bacalhau: pedidos de sempre e uma companhia que sempre ajudou a tornar minha tarefa imperceptível. Pedi meus camaradas de introspecção, e, como não acontecia, comecei realmente a ler. Lia e fazia anotações, até perceber um assunto interessante à minha esquerda, onde conversavam dois amigos.

Para não saber a idade e por isso pressupor idéias, princípios e preferências, enterrava os olhos nas linhas do capítulo, mas sem prosseguir a leitura, era puro teatro. Não via linhas, via uma macha acinzentada que me relacionava ao significado das palavras ao redor. Eis o diálogo:

- Foi à praia ontem?
- Acabei indo, tinha terminado de organizar uns papéis do trabalho lá em casa. Mas acabou ventando demais, uma horinha só de praia.
- Encontrou alguém conhecido?
- Aham! Lembra daquelas duas que conhecemos na viagem pra Saquarema? Dois meses já, né?
- Isso tudo? Até que foram duas boas companhias. Nem esperávamos, e elas sentaram na nossa mesa, caras de pau completamente. Assim é melhor, facilita o nosso trabalho e o delas. Mas, e elas?
- Continuam bonitinhas.
- Não foi isso que eu perguntei...
- Porra, então pergunta direito!
- Marcou alguma coisa?
- Claro, tá achando o quê?
- E qual vai ser?
- Amanhã, dez horas na casa da loirinha.
- Na casa dela? Mas as duas não moravam em Saquarema?
- Acho que a loirinha se mudou... Que diferença faz, a gente vai economizar até no dinheiro do motel. Ela disse que até a bebida e os petiscos ia comprar.
- Assim parece até piada. Quem vai?
- Só nós quatro: eu, você, a loirinha e a outra que você pegou.
- Não tinha uma amiga melhorzinha não?
- Sexo, bebida e comida de graça e você ainda quer escolher? Parece que a sua começou a malhar... Aquela barriga dela deu uma diminuída.
- Menos pior.
Vocês vão pedir uma palavra minha. Preciso dizer alguma coisa? Sem preguiça, por favor. Ainda continuarei o diálogo e as minhas considerações já serão ditas.
Hiroshima foi uma "vitória" da ciência

Arnaldo Jabor

O GLOBO - 11/08/09

Eu ia escrever sobre as bombas de lama que caem sobre a população brasileira, enviadas pelos senadores do mal. Mas, lembrei-me que há cinco dias (64 anos no túnel do tempo), em 6 e 9 de agosto de 1945, os norte-americanos destruíram Hiroshima e Nagasaki. Ninguém fala mais nisso. Os jornais esqueceram. Por isso, todo ano me repito e escrevo sobre a bomba nessa data, não para condenar um dos maiores crimes da humanidade. Mas para lembrar aos que fazem o favor de me ler que o impensável pode acontecer sempre. O horror se moderniza, mas não acaba.
Agora, não temos mais a Guerra Fria; ficamos com a guerra escaldante do deserto - nações islâmicas e nucleares -, a mais perigosa combinação: fanatismo e poder. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a máquina americana comandada pela lógica do turvo capitalismo, apesar e além de Obama. De outro lado, os homens-bomba multiplicados por mil. E eles amam a morte. Imaginem homens-bomba nucleares... Paquistão, Índia, Israel e, um dia desses, o Irã. Sem falar na Coreia do Norte, Rússia e na inveja letal que o grande progresso da China poderá provocar no Ocidente americano.
Vivemos hoje na era inaugurada por Hiroshima: um tempo em que o suicídio da humanidade virou uma escolha política e militar. Os computadores do Pentágono oscilam: valerá ou não a pena continuarmos atômicos? Há poucos meses, no trágico período Bush, já recauchutaram 10 mil bombas "velhas", para que rejuvenesçam e durem mais.
Em Hiroshima, inaugurou-se a "guerra preventiva" de hoje. Enquanto o holocausto dos judeus na Segunda Guerra fecha o século 20, por conta de contradições ainda do século 19, o espetáculo dantesco de Hiroshima marca o início da guerra do século 21, continuada na destruição do World Trade Center em 2001.
Auschwitz e Treblinka ainda eram "fornos" da Revolução Industrial, mas Hiroshima inventou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em um minuto o trabalho de meses e meses do nazismo.
O que mais impressiona na destruição de Hiroshima é a morte "on delivery", "de pronta entrega", sem trens de gado humano; morte "clean", anglo-saxônica. A bomba americana foi considerada uma "vitória da ciência". Hiroshima e Nagasaki prefiguram a Guerra do Golfo, Afeganistão e Iraque 2.
Os nazistas matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas americanas foram lançadas em nome da "Razão". Na luta pela democracia, rasparam da face da terra os "japorongas", seres oblíquos que , como dizia Truman em seu diário, " são animais cruéis, obstinados, traidores". Seres inferiores de olhinho puxado podiam ser fritos como "shitakes".
Enquanto os burocratas alemães contavam os dentes de ouro e óculos que sobraram nos campos, a bomba A agiu como um detergente, um mata-baratas.
Vale lembrar um detalhe espantoso: o avião que largou a bomba A em Hiroshima tinha o nome da mãe do piloto na fuselagem - "Enola Gay". Esse gesto de carinho batizou com fogo 150 mil pessoas. Essa foi a mãe de todas as bombas, parindo um feto do demônio que exterminou 40 mil crianças em 15 segundos.
Ainda hoje, é fascinante ver as racionalizações que a América militar inventou para justificar seu crime nuclear. O presidente Harry Truman, que mandou a bomba, escreveu: "Eu queria nossos garotos de volta ("our kids") e ordenei o ataque para acelerar essa volta". Diziam ainda que Hitler estava perto de conseguir a bomba, o que é mentira.
A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar apenas o imperador e a monarquia.
Uma das razões reais era que o presidente e os falcões da época queriam testar o brinquedo novo. Truman fala dele como um garoto: "Uau! É o mais fantástico aparelho de destruição jamais inventado! Uau! No teste, fez uma torre de aço de 60 metros virar um sorvete quente!...".
Além disso, os americanos queriam vingar Pearl Harbor, pela surpresa de fogo, exatamente como o ataque japonês três anos antes. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a Guerra Fria; além, claro, de exibir para o mundo um show "maravilhoso" de som e luz, uma superprodução a cores do novo Império.
O holocausto sujou o nome da Alemanha, mas Hiroshima soa quase como uma vitória tecnológica "inevitável". Na época, a bomba explodiu como um alívio e a opinião pública celebrou tontamente. Nesses dias, longe da Ásia e Europa, só havia os papéis brancos caindo como pombas da paz na Quinta Avenida, sobre os beijos de amor e vitória. Era o início de uma era de prosperidade na América, dos musicais de Hollywood, pois o Eixo do Mal estava derretido. Até a moda feminina foi influenciada; as mulheres começaram a usar um penteado em cogumelo, chamado Bomba Atômica. Naquele ambiente mundial, não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. A época estava morta para palavras, na vala comum dos detritos humanistas.
A euforia americana avança até 1949, quando a bomba H soviética acaba com a festa, instilando a paranoia nacional que vai crescer muito em 1957, quando sobe o "Sputnik", o primeiro satélite soviético, com um "bip bip" que humilhava os americanos - eu estava lá: parecia um 11 de setembro.
Incrivelmente, o holocausto ainda tinha o desejo sinistro de produzir um "sentido" para a matança, um futuro milênio ariano.
Hoje, não há mais objetivos ideológicos ou "humanos" no comando. No lado ocidental, quem mandam são as coisas: a lógica do petróleo, a incessante indústria militar, a paranoia anti-terror que a era Bush tanto manipulou.
Mesmo sem um projeto humano no comando supremo, as bombas desejam explodir. Estamos assim: de um lado, interesses do capital; do outro, Alá. A pulsão de morte e o desejo de mercado se encontraram finalmente. Quem vai controlar?

31 julho 2009

Brasilidade

Uma pintura
concebida lenta
Olhos cerrados
Sem pincel
Sem tinta
Sem matéria
Somente vida
Imagem inconstante
Metamorfose de cores, formas, corpos, olhos,
Mas, em essência,
tudo se vai rijo
Incisivo
Efemeridade pueril
Escancara
Desgoverna
Inferniza
Desmarcara
Uma pintura brasileira
entre o verde e o amarelo.
(ou será azul e amarelo?)

19 julho 2009

Alguém que vem da solidão

Os dias de solidão
são agradáveis
Penso
E fico vendo tudo
Comigo.

Eles desenham
lentos
uma voz
depois um rosto
Até pedirem
em sussurros
uma ligação.

14 julho 2009

Omissão

Agora o tempo é livre.
Mas livre, pra quê?
Não sei o que fazer,
menos ainda o que dizer.

Livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,
livre, livre, livre, livre, livre, livre, livre,

A liberdade se tornou uma prisão. Livre?

É possível estar livre de si mesmo? Se é, quando se dá?

O que eu sou senão aquilo que os olhares supunham?

Eu gosto de alguma coisa? Eu prefiro alguma coisa?

Eu amo alguma coisa?
Diz, eu amo alguma coisa?
Diz, eu amo alguma coisa?
Diz, eu amo alguma coisa?

As paredes vêm chegando
O ar se comprime
O pulmão se retrai
A boca sem saliva
Tudo tem olhos
Todos me julgam

Parem de me ver!
Desviem estes olhos!

A sala toda tem espelhos!
As imagens vão até o infinito!
Tudo vem até mim!
Tudo termina em mim!
Fecho os olhos
Vejo olhos!
Penso em nada!
O nada me constrói!
Eu tenho matéria
Eu tenho eu!
Eu, eu sou eu?
Eu sou imagem?
Eu sou mentira!

03 junho 2009

Encontrei você. Foi num dia. Não lembro qual. Mas foi um dia. Estive ali, pertinho, do lado, quase, sentindo o cheirinho. E depois esperei, esperei, e... nada. Espero até agora, daqui, de longe, muito longe, de onde tudo faz parte da saudade. Saudade, uma companhia. Da saudade, vim de lá, correndo, rápido, respirando alto, descompassado. Não cheguei onde queria, nem sabia onde seria. Venho de lá, para cá, e daqui para lá, giro, volto para o mesmo ponto, onde nada começou e tudo vai acontecer. Não espero mais. Não existe razão para parar. Pensar seria um gesto digno. Seria um sonho saber o destino da sua sombra. Encontrá-la é um vestígio de sua presença. Nunca será você. Um espaço que fora ocupado, não é mais. Um movimento já realizado, sem vê-lo para lembrar. Tudo fica, quando se faz lembrança. Tudo se vai, quando é sonho. Vi, lembrei, vivi. Vou na curva, no soslaio para ver. Mudei o grau dos óculos, fiz tratamento. Comprei lentes novas. Não vejo mais a turva imagem do dia. Porém, à noite, as sombras são todas nebulosas, indistintas. Por isso tirei os óculos, minha bengala dos olhos. Todas as imagens tem a mesma cor. Enxergo tudo, até a tua sombra, mesmo que não a veja com muita nitidez. Quero, vejo. Não quero, cego.

27 abril 2009

Por que título?

Só quero o outro
se for a mim mesmo.

Diante da diferença,
uma grande contradição:

- Viver comigo em mim mesmo
para além do interior

Mas terminar
no que sou,
no que fui,
no que serei...

Uma presença árida
e melancólica
entre sozinho e solitária
pelo prazer de estar em mim
e para mim
e assustado por estar fora
e no interior

Esta continuidade inapelável
Movimento inconstante, tênue
que provoca pavor
porque estarei
eu.

Mas, um cheiro, o que é um cheiro?