27 abril 2012

Salto, mergulho, ar

Acordei inquieto, com uma leve dor de cabeça. O dia estava claro, ainda cedo, o sol começando a respirar. Ainda uma lua resistia, mesmo na luz que vinha avassaladora. Um pouco de charme, um tanto de desenvoltura, e a brutalidade se espanta, como pregos sem ponta.

Desci, peguei o carro e fui à praia. Sem esperar, larguei cadeira, barraca, mochila e livros, e corri pro mar: mergulhei...

Ali, onde a água vira pele
O frio abraça o corpo
Envolve a inquietação
Devolve a plenitude
Em silêncio

Em silêncio,
no sal, na dança da água
no embalo do corpo em movimento suave
enfim encontro paz
neste mergulho
de felicidade simplória
quieta
parada
pacata.

12 dezembro 2011

Dolce far niente

Maldita culpa moderna: ocupa-se o tempo o tempo inteiro. Lave a louça; faça o farfalle; varra a casa; tire a poeira; pinte a porta; conserte a maçaneta; retoque a maquiagem; regue as plantas; pague as contas; peça os remédios; vá ao supermercado; troque o óleo, lave o carro e faça o polimento; mande os emails; mais um, outro, e mais outro, mais unzinho, outros, outros, outros, mais, mais, mais, mais, mais, mais; tuite que você está no banheiro - do banheiro; poste um vídeo idiota; poste uma frase famosa; poste o que você sente; poste, poste, poste - quase, só falta uma lâmpada no alto, nos olhos; poste mais um poquinho; poste o que vai fazer nas férias; mude os móveis lugar; reforme o banheiro; consere a descarga; lave as cuecas; não esqueça as calcinhas da coleção; esfregue o chão até achar o outro andar; dobre a roupa de cama; arrume o armário pela quinta vez na semana; dê banho na calopsita pela segunda vez no dia; corte as suas e as unhas dela; cante como ela; faça o buço; depile a virilha; penteie os pelos do braço; pinte a sobrancelha de vermelho; passe o terno; escolha a gravata; e durma vestido.

Não esqueça: repita tudo amanhã.

08 novembro 2011

A beira

Você morreu, e meus olhos foram levados pelos seus que se iam em um desespero sinistramente calado, angustiado porque sabia que aquilo enfim era o fim e nunca mais estaríamos, nem muito menos seríamos o que criamos pelo tempo e pelo afeto. Senti em você a presença da inexistência como se não ser fosse possível mesmo estando e sendo. Sentir o bafo aterrador do ato de morrer parece o início do não viver. Começamos a morrer quando os fragmentos de nossa essência se apagam no fim do dia com a inexistência gradativa daqueles que nos fazem humanos. Nascemos, pois, à beira de não ser.

Teatro de Si

Dois telefones nas mãos: celular e fixo. Um dia, dois, três... quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez dias... duas semanas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze... meses...

Agora, o mesmo número enxerga tudo que quer esconder. Os aparelhos sorriem, irônicos, porque sabem. Cada tecla ganha uma aparência de espera, como os passos de uma longa caminhada entre o nunca e o nada. Gira, se contorce, cambalhotas, movimentos, anseios, pernas longas para os menores espaços; quer. Quero. Onde está? Com? Por quê? Como se move? Sua pele ainda? Seus cabelos vão?

Quer, mas... Quer... porém... Quer...

Encontra parte de si no visor, entre as teclas, escondido, pequeno, calado, afastado de tudo, naquele espelho retrovisor. Quem é o indivíduo senão aquele fragmento que se perde no passado mas que a todo tempo se revisa e se refaz no presente? Quem é você que foi e nem o café tomou antes que esfriasse? Quem é você que arriscou e sumiu? Quem é você que deixou o pão francês com a faca untada de manteiga sem uma mordida? Quem é você que abraçou o pequeno cachorro, encharcou seu pelo de cheiro e nunca mais? Quem é você que esqueceu o anel de família no criado mudo propositalmente? Quem é você que não quer? Quem é você que abandonou aquela calcinha preta - pequena - "escondida" no carro? Quem é você que guardou o pijama entre minhas camisas casualmente? Quem é você?

Estar entre o espaço virtual e a lembrança parece uma sinfonia que aguarda sem tempo a chegada de seu maestro desaparecido no céu que deságua no mar de desilusão. Discar, digitar, teclar; verbos sinônimos de um eu que não se permite ser em nome da razão. Vozes; vozes; vozes; vozes; vozes; vozes; suas próprias palavras percorrem dentro de si uma trilha sonora de espaços de sombra, que, iluminados vez por outra, articulam senilidade e afeto, quereres e maldizeres, afazeres e desprazeres.

Sua confusa fusão entrelaça linhas telefônicas nos seus poemas que ainda serão escritos. Sua confusa fusão entrelaça aquilo que foi com o que poderia, caso deixasse a vontade fazer-se realidade. Sua confusa fusão entrelaça a si mesmo em uma mentira escancarada que se quer verdade, mas que ainda permanece diante do oposto, para fingir como atores que atuam em papéis de si mesmos. Hoje representa a si mesmo no palco de sua própria vida.

16 outubro 2011

Tensão

Enquanto o parabéns acontecia, eu não conseguia bater palmas. Minhas pernas tremiam um pouco e não era possível manter a atenção em nada do que me diziam. Via todos se distanciando, mesmo que estivessem ao meu lado. A gente sabe quando a porrada virá – só não sabemos de onde, por isso aquele pincelzinho de angústia vai pintando os dedos das mãos de uma cor estranha e, sorrateiro, cobre a coluna, bem no centro das costas. A gente sabe, sim, a gente sabe.
Quase sempre deixava o celular no bolso. Porém, por obra das fantásticas empresas de telefonia, era obrigado a deixá-lo em cima da janela do quarto de visitas, porque era o único lugar que surgia, como mágica, o sinal. Além disso, esquecera de carregá-lo.
No meio da confusão, resolvi ir ao quarto e checar se havia alguma ligação perdida. Bastou que eu pegasse o aparelho: pronto, aquilo disparou a tocar. Por que eu sabia? Por quê? Não sou vidente, nem quero ser. Eu não olhava o nome no visor. Recusava-me a aceitar o óbvio. Fechei os olhos tentando evitar, mas me lancei numa cruzada insuportável de especulações, até chegar ao ponto que alguém, uma silhueta de gente, me enforcava com o olhar. Fui obrigado a abrir os olhos, o que fiz rasgando o tempo e minha visão: era você. E era para deixar de ser. Mecânico, pressionei o send e ouvi, em gritos sonoros de desespero:

- Por quê? Por quê? Por quê você fez isso comigo? Por quê?

Os porquês ecoaram múltiplos em tons de facas abrindo as costelas, uma a uma, de dentro pra fora. Espirrava-me em órgãos dilacerado no meu sangue multicolorido, porém seco e agreste, de tons escuros, enegrecidos. Via-me em uma roda gigante, sozinho, a girar, e girar, e girar, ininterruptamente, cada vez mais rápido, em uma capsula sem oxigênio, quando era-me dolorosamente nítido: os meus braços rompendo a pele, em bolhas pequenas; os músculos emergiam, fibra a fibra, como afiadas lâminas que arrebentariam o asfalto. O coro cabeludo arrancava-se, como se ganhasse vida, e partes do cérebro jorravam. Estive na imaginação como se nada fosse criado, mas tudo fosse vivo, como o choro de um bebê ao nascer. Vivenciei a mentira como se fosse a mais inocente verdade. Anestesiado, continuava ouvindo, em berros sem qualquer melodrama, pois me chegavam verdadeiros como nenhum outro som seria capaz:

- Por quê? O que eu fiz? Por quê? Como você pode fazer isso comigo? Me responde!!! Fala! Agora fala...

Eu não falava, não, não, nada daquilo realmente era físico, experiência. Tinha convicção que o irreal se tornara a realidade. O quarto, as paredes brancas desenhadas e escritas, o telefone, meus pés, minhas mãos, aquele celular: por favor, por favor, enfim eu tinha me transformado num quadro expressionista e surreal. Seria? Não. Do emaranhado, ouvi uma voz de tonalidade masculina, até perceber que um de meus amigos parara na porta do quarto, assustado, perguntando:

- Parceiro, o que é isso? Quer ajuda? Tudo bem?

Aquela voz me arrancou do quadro vanguardista. Saltei, desliguei o celular e soltei-o no chão, desnorteado. – Por quê? Eu me perguntava em voz baixa, naquele sussurro dos desabrigados que moram, mas nunca se sentiram em casa. Presenciei a construção do abandono, tanto que ali eu não era nada e estava completamente só, mesmo diante de tudo.

09 outubro 2011

Sem ver

Vou esquecendo seu rosto. Olhos abertos ou fechados; de dia ou de noite; no verão ou no inverno; em casa ou na rua; sorridente ou choroso; você vai se tornando uma ideia, lá longe, onde nem a inconsciência tem o poder da reconstrução. Lembro momentos, mas não do seu estado físico; enxergo nossas sensações com a pele, acontece de arrepios vagarem meu corpo só de imaginar.
Na cama, quando havia luz, nos entreolhávamos e um de nós se levantava para desfazer aquela imagem limitada de nossas visões: luzes, nada de luzes. Aquele que apagava, retornava vagaroso e se ouvia o respirar mais leve, enquanto a cama se movia pelo toque do corpo. Inicialmente permanecíamos de olhos abertos, mas era uma luta insensata, porque não precisávamos deles. Então, logo que sentíamos o outro, naturalmente a visão sucumbia ao prazer. Eu via você. Via de dentro de mim e no seu interior. Sentíamos um ao outro. A pele se aproximava e se encontrava na escuridão pela quentura e pelo cheiro; abandonávamos nossas mãos, deixando os dedos um tanto tristes: queriam muito tocar. Não precisávamos deles também: descobríamos cada limitação física e, aos poucos, aprendíamos a traspô-las.
Éramos pele e odores. Reconhecíamo-nos no estado mais primitivo do contato entre os seres, fundindo nossos sentidos, confundindo cada um deles. Do cheiro, conseguia distinguir a coxa do seio, o seio da barriga, a barriga do pescoço, o pescoço das bochechas, as bochechas dos lábios, os lábios da testa, a testa dos pés, os pés dos dedos, os dedos da canela, a canela dos joelhos, os joelhos da parte posterior da coxa, a coxa de cada nádega, uma nádega da outra, até onde pudesse ver a surrealidade: pelo cheiro, sabia se me aproximava dos grandes lábios até perceber o seu clitóris.
Minha língua queria, queria sempre muito, mas você sussurrava, encantada: “sem pressa, sem pressa”. Nosso ritmo era o compasso oposto do mundo. Oposto? Será mesmo oposto? Se fosse lento, a oposição faria sentido. Contudo, o conceito do tempo nos era uma abstração, por isso oposição jamais: fomos capazes de dominá-lo e moldá-lo como uma miniatura insignificante. Não vivíamos no tempo, vivíamos um estado de consumação, em que não existem ponteiros, badaladas, pêndulos, nem marcadores analógicos ou digitais. Para alguns, o tempo se marca em horas; para outros, em noites; para alguns, em estações; para muitos, o tempo é uma garantia de sucesso, vale muito, muito em notas coloridas em rostos de gente famosa que ninguém conhece; para poucos, o tempo se marca em livros, não em dias; para nós, a realidade não era tempo: nossa realidade mastigava relógios e fluía a cada pulsar de sangue a percorrer as entranhas dos nossos corpos, embriagados pelas sensações intermináveis dos gostos de pele, dos cheiros de excitação, dos sons impulsivos e do toque: através dele, quando distantes, lembrávamo-nos daquele sinal nas costas, do nariz um tanto torto, das sardas no rosto e nas costas, das cicatrizes (no quadril, no joelho esquerdo, no dedo mindinho, na sola do pé direito); do desenho incomparável de nossas bundas, de seus dedos de pele macia, mas de forma robusta. Vivemos os sentidos, sem tempo, sem espaço, acima de tudo vivemos cheiros de formas. Quando minha língua tocava suas costas pelo centro, desde o quadril até chegar à nuca, seus poros se abriam como vãos infinitos, como a pedir que me perdesse nos seus labirintos de sensações intermináveis. E eu me lançava neles, capaz de ser um microporo em seu corpo apenas para compartilhar do arrepio de pelo por pelo.
Seus espaços vazios se preenchem pela capacidade de transformar em eternidade as sensações. Você poderia ser qualquer outra, porque não tem mais nome, nem sobrenome; não é mais um rosto de olhos de cores específicas; nem mais um sorriso por causa de uma forma particular de face. Você se transfigurou na potencialidade dos meus sentidos quando penso em nós dois. Não vejo você. Aprendi a sentir em demasia pelo vasto encontro de nossas realidades. Não vejo você. Consegui ser pela sua ausência. Não vejo você. Agora, sou capaz de me traduzir nas profundezas de uma pequena sinestesia. Não vejo você. Porém, você estará comigo para sempre. Deveríamos mudar o nome para o que tínhamos: de namoro para sinestesia. Esquecer? Nunca. Esquecer seria deixar a mim mesmo em qualquer esquina; seria abandonar minha própria história; seria despir-me daquilo que se transformou em mim: não é só você, nesse singular egoísta: vocês. Agora sim, honesto e corajoso.

É luxo só


Entrou no shopping
Apressado
Comprou os olhos na farmácia
As orelhas encontrou na praça de alimentação
O nariz na delicatessen
Os lábios na loja de lingerie
Os cabelos na perfumaria
O queixo na vidraçaria
A língua achou na loja de telefonia
Conseguiu variedade de forma
de cor e de textura
No fast-food
roubou umas batatas.

Foi ao banheiro
entrou na cabine
e vestiu seu modelito
completo
tudo novo.
Saiu de lá
andando
assim assim...

Em casa,
tomou banho.
Escorriam pelo corpo
os self-presentinhos
para os outros.

Quando terminou
só tinha batata na sacola:
- e não é que encaixa
direitinho no pescoço?
Pensou.

Felicidade cretina ou seria clandestina?


Sessenta e cinco anos
Aposentado
Numa de suas várias outras manhãs
Levantou
Escovou os dentes
Lavou o rosto
Penteou o cabelo
Colocou a dentadura
E a peruca

Como quase sempre
Abriu o armário
E se viu no espelho

Eram duas imagens:
Chuchu de um lado
Shrek do outro.

Chuchu olhou Shrek
e disse:
Chuchurek!

Ele riu
e entrou no espelho.

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Buscou no alto do armário uma caixa antiga
completamente empoeirada
Abriu
Entrou
Fechou
E foi trabalhar.

Keep walking - Keep cheating


No meio do luxo
virei lixo

Em pequenas doses diárias
me transformei em fezes
de coisas

Virei uma aberração
Um factotum
estereotipado
pelas pequenas partículas de lixo
de que se compõe o meu sorriso
de dentes brancos
laminados a ouro.

Meu luxo hoje é viver de lixos

Meus antidepressivos
Relaxantes musculares
e analgésicos
sustentam meu caminho sem volta
e nada: um eu desmantelado.

End

Tive um sonho:
Você caminhava
Na direção contrária
Sem retidão
Embriagado pela idade
Cansado pelo vento do tempo
Empurrado pela água dos olhos

Nao havia terra
Nada de céu
Nem horizonte

Não subia
Nem descia
Ia
E não parava

A corcunda ficou pequena
Quase desapareceu

Naquele ponto distante
Ouvia sua voz quase surda
Em sussurro de saudade
- Dão...

Abri os olhos lentamente
Querendo ouvir você

Lá no horizonte
Quando céu e terra se encontram
Na imaginação e no porvir

Aqui
Onde tudo existe
Tudo ficou estrábico pra mim.

06 outubro 2011

Cru

Não ando
Corro
Não sinto
Passo
Não choro
Sem tempo
Não desejo
Compras
Não sonho
Compraram os meus

Onde falta carinho
compraram um perfume de alegria.
Onde falta carinho?
Deixa de frescura,
acorda e vai trabalhar.

23 setembro 2011

Loucos

Ajoelhado, chorava aos pés dela.
Sem pudor, sussurrava: eu te amo, eu te amo, eu te amo.
Ela era a personificação da indiferença:
Sem uma lágrima
Seca feito sertão
Gretada pelo sol
fria em tanto calor.

Continuei, quase sangrando lágrimas dos joelhos,
Enquanto ela ria
Sarcástica como um capataz.
Abandonou a distância
Torceu os olhos
E acertou uma bofetada certeira, em cheio, estalada
Dizendo com os olhos:
Você é ridículo.
A boca emudecida como monges.
Dito – e não dito
Virou-se e sumiu.

(Teve três filhos
Um marido
Envelheceu
Família
Morreu)

Eu? Bem, eu
Fui até a última estação dos dias.
Em nós não deixei suor para secar
Nem ferida para curar
Nem sol para esfriar
Nem filho para criar
Menos ainda pais para ver morrer.
Os trilhos de minhas pernas
Deslizaram em cada vagão de sua pele
Quando, no fim, chegaram à porta
De onde caíram...

Quando ela foi
Abandonei o dia
Até vomitá-lo na noite
E comê-los juntos na madrugada.
Engoli o tempo
Sem mastigação.
Acreditei na dor
Como conselho paterno
Casei-me com ela
Na igreja corpórea
Quase nuclear
Em ato sagrado e crente
Sem medo.
Fui até onde o corpo suportava roer-se
E ruiu
Despencou
Desmoronei sem melodrama
Nas estradas como carona
Nos becos úmidos e cheios de limo dormia
E me deitava nas esquinas das largas avenidas
Vendo os carros passarem
Como um passado que se arrebenta em pedaços.

Comi minhas camisas
Bebi cada calça, sapato e meia.
De desjejum foram meus tênis e gaiolas
Junto dos pneus de meus carros
Devorei a lataria, as cores, os vidros.
Queimei minha raiva mastigando
Futilidades.

Nu, andei
Andei sem parar.

Despido de mim
Na lavanderia
- Todos me vendo, e rindo
Estava em paz
(um pouco sujo)
(descabelado)
(dolorido)
Surdo para eles
Esperei sentado, a última luz apagar,
E minhas roupas novas estavam limpas, secas e passadas.

Vesti seus olhos de camisa
Sua pele de calças
O castanho de olhos e de cabelos como sandália.

- Camisa branca (básica)
- Calça jeans (básica)
- Sandálias de couro

Com você,
Saímos de mãos dadas.