29 novembro 2010

Você é o que eu odeio!

Queremos calar
o mudo.
Queremos cegar
o cego.
Queremos deixar
o abandonado.
Queremos apagar
o invisível.
Queremos estuprar
a mácula.
Queremos fingir
Sem máscara.
Queremos banir
o exilado.

Queremos acabar com a vida
Do morto.

Meu nome é Bill
Não tenho sobrenome,
E você deve saber a razão...
Ou deveria.
Minha mãe é minha santinha.
Meu pai, o meu trabalho.
Meus irmãos, os meus amigos
(os poucos que restam).
Se eu tenho religião?
Posso até ter,
Mas meu Deus é o meu trabalho:
Com ele eu como e bebo água.
Até sobra uma merreca pra cerveja.
Escuto funk,
Rap e pagode.
Prefiro rap.
Sou eu.

Mesmo sem sobrenome,
Queremos que o Bill
Perca o único nome.

Fácil, não?
Vai ser enterrado
- se for
Como um cachorro sarnento.

Queremos o enterro
Do indigente.

Ué, mas ele já não está morto?
Não, idiota, to falando do outro,
Aquele ali sem camisa
Pretinho
Pobre...

Morra!

06 novembro 2010

Mudança de tema

Às vezes somos muito repetitivos
Me cansei.

30 anos.
quem diria?
Ainda pequeno, costumava dizer a minha avó:
em 2000 vou ter 20 anos. E ela sorria.
Passaram-se 10 anos já:
2010.

Tenho foices nas pernas
Martelos nos braços
Coletes à prova de balas no peito

E na cabeça?
Nada.
Sinto-me leve
disposto
vivo,
muito vivo.

Uma dia me ofereci um chapéu de muletas
bengalas
shots de tequila
limão e sal.

Continuo sem nada
Franco.

Chuva

Hoje está chovendo. Um sábado, quieto, em casa, lendo, despretensioso; vendo filmes; escrevendo; a chuva virou companheira, afetuosa e compreensiva, capaz de absorver o passado, o futuro, e dialeticamente transformá-los em presente - um presente físico ou temporal.

Chuva.

Estranho lúcido olhar

Olhei em seus olhos
e nada vi.
Procurei, vasculhei
tentei, tramei
roubei, bebi.
Você não estava mais.
Poderia estar.

Encontrei
estava sem dor
não tremia
respirava
sorria
dançava
conversava
lúcida

Uma lucidez estranha
amarga
anestesiada
cansada
e resignada

Chorei
sem poder vê-la
sem olhos.

24 outubro 2010

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
(Paulo Leminski)

Quando o amor acaba em rima
a raiva passou
e a poesia vai em vontades de saudade
sem a dor da nostalgia
Quando o amor acaba em raiva
ele ficou em travesti,
que se corrói em heroína de ar
bebe sangue de esgoto
canta sons de vidro
e mastiga cascalhos
em espinhos em areia em você.

Quando tudo se vai em rima
voltamos ao nosso interior
e somos, enfim.

Poema em Dupla - 4

A cova é o lugar-nenhum

o céu é um
(Arnaldo Antunes)

A pressa escava e encontra os lugares-comuns
os sem-lugares
os lugares-nenhuns!

Poema em Dupla - 3

A rosa se rosa
A rosa rosa
Arroz
(Arnaldo Antunes)

A gata se gata
a gata gata
Cigana

Poema em Dupla - 2

um cachorro louco
não se pode se soltar
se um dono louco
segurar.
(Arnaldo Antunes)

Um cachorro não é louco
se o pastor lhe abençoar
mas somente se o dono
louco molhar as mãos
do sábio religioso
que recolhe aquilo que
todos querem lhe dar...

Poema em Dupla - 1

Quem com ouro fere?
(Arnaldo Antunes)

Ganha um prêmio de adoração
Assume a total despretensão
Vence o estúpido do meu vizinho
Perecebe Vence Assume Ganha
e...

Esteja além da janela

Saiamos de casa
Vejamos o Rio

Mundo-cidade
ao lado de casa

De casa, vejo o Rio
Virtual
Imagem

O que não é imagem?

Seu beijo
Imagem
Seu corpo
Imagem
Ainda juntos
imagem
Eu te vejo
imagem

A imagem-imagem
A imagem-experiência
Imagens-memória

Tudo se vai em imagens!

Contudo,

SAIA DE CASA!

Seja alteridade

O espaço-prisão
das palavras-palavras

O finito espaço semântico
da poesia

Palavras
(formas?)

PA-LA-VRAS
(veja o dicionário!)

Com um pincel

As paredes têm palavras
Tijolo
Cimento
Pedras

As paredes-palavras
são prisões de significados
Subi uma parede-poema
e as pedras-palavras
liberaram suas algemas

Estou atado
a poucas palavras
palavras sólidas
palavras-palavras

As palavras
sempre palavras

Comprei um pincel!

Quando as palavras não precisam dizer

Palavras muitas
Pouco dizer
Olhe!

SILÊNCIO
de hoje.

SUSPIRO
de amanhã.

O BERRO
de ontem.

A VIDA
de hoje.

A PALAVRA
de amanhã.

O SILÊNCIO
de hoje.

A EX-PERIÊNCIA
de domingo.

07 outubro 2010

No tempo lido

Ler estabelece um limite:
antes são apenas olhos
depois tudo se faz
em olhar

O tempo da leitura
é o momento da transgressão.

O tempo da leitura
devora
os sinos
os relógios do pulso
a pontuação.

O tempo da leitura
faz o homem
negro
onde tudo se quer
branco.
Ficar sozinho
Faz descobrir
outro homem
no mesmo corpo

Diálogos com ela e o aquele

Não sabia que a poesia falava
Ela me disse, certa vez,
que o tempo é primo
da morte
irmão do vento
pai da escolha...

A poesia teme o dia seguinte
porque vive no sonho
que pode acabar...

Ela ainda me diz
que precisa esperar
porque quer evitar
a palavra equívoco
aquela que desfaz

A palavra poesia
representa o Beijo
porque precisa
para mudar
(viver)
do leitor
e do poeta

Se eu não leio
nunca creio
que seria capaz
de tornar-me ideia
e viver em paz.

Entre o seio e a palavra

Caminhei a passos largos
e mãos atreladas a ela,
poesia.

Seu mistério
alimenta a descoberta
feminina

Mulher e poesia
Mesma origem
Caráter dissimulado
Erotismo
O corpo que marca
a forma
Mas não mostra
a pele

Para chegar-lhes
aos pés
é preciso um olhar
lírico e encantado
pela aurora

Nascer no hábito vulgar
é o silêncio
da mulher-poema.

02 outubro 2010

Eu disse
Você também
Agora temos
casa, comida, roupa lavada
Menos os móveis
Não importa, você sussurrou
O colchão é inflável.
Você veio e me deixou aflito
Agora volta e me deixa em desespero
E amanhã veio novamente
Sobretudo em nome da dor
Sorria, você pediu!
Eu te amo, sabia!?
Como é boa a interrogação.
Você me disse
certa vez
que viria
Mas ficou em casa
comendo pipoca
e chocolate.
Gostaria de ter você aqui
- Quero tudo de volta
- Não, não é possível...
E você diz:
- calma.
O pai cai na rua
O gari veio e varreu o velho
Todos gargalharam
Era um entulho.
Olhei as lojas
Ouvi o vendedor
"Simpático"
Cuspi na vitrine
e manchei a liquidação.
Ouvi você dizer "estou indo"?
Ouvi você dizer "eu te amo"?
Escrever é uma impossibilidade
As palavras estão esquecidas
No tempo do sono constante
O tempo vai passando
e a voz aumenta...

22 setembro 2010

O mundo é um moinho - Cartola

Ainda é cedo, amor
mal começaste a conhecer a vida
já anuncias a hora da partida
sem saber mesmo o rumo de irás tomar

Preste atenção, querida
embora eu saiba que estas resolvida
em cada esquina cai um pouco a tua vida
em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
preste atenção
o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó

Prete atenção, querida
de cada amor tu herdarás só o cinismo
quando notares estás a beira do abismo
abismo que cavastes com teus pés.

Nada, nunca, jamais

Dia "um".
Dia "três".
Dois dias
em um mês de novidades
Encontrou a porta lacrada
Passou a corrente
cuspiu a chave dos cadeados.

Notas de burocracia sentimental

Esqueceu a data
Arquivou o amor.

Autofagia

Arrancou o couro cabeludo
Queria ver o cérebro no espelho
Examinou
Procurou
Irritou-se

Encontrou:
retirou os dias de ontem
ficou satisfeito
mas eles voltaram
e ele...
arrastou a cabeça no muro...

Inconstância

O dedo no gatilho do tempo
em direção ao espelho

A imagem que escorre
vem em névoas

A imagem que se finca
vem em pedras

Imagem
pedra
névoa

16 setembro 2010

Crônicas de ontem

I.

Escrevem na parede
As primeiras sílabas
T com A

P com O

V com u
VU.
P com a
PA
(ainda não sabe PA com I...)

II.

Acordava
Madrugada
Som alto
Sala da casa
Ele ouvia Coltrane
Wagner
João
Assustado
Andava
Abria a porta
Outra
Andava o corredor
Puxava sua camisa
E pedia:
- Pai,
Abaixo um pouco...

III.

Vasco e Vitória
Vitória 1 a 0
O jogo?
Não viu...
Olhava tudo
As cadeiras
A pilastra na frente delas
As pessoas
Os gritos
O mar de gente a sua frente
Um pouco frio
Alguns jogadores
Um juiz
E ele ao seu lado.

IV.

Tinha feito algo errado
Ele estava irritado
Precisava repreender
Veio ao quarto
Daria um tapa
Na bunda

Quando o viu entrar,
Começou a pular
Dizendo:
- não me bate não
Não me bate não
Não me bate não
Não me bate não
Não me bate não

Da porta, começou a rir.

V.

Sempre que ficavam de castigo
Um deles começava
- Posso ir ao banheiro?
O outro
- To com fome!
Até que o pai
Gritava
- Tira esses meninos dai!

VI.

Tinha medo de não saber
Ele sabia
Quando não sabia
Inventava que sabia
Agora que sabe
Não inventa mais,
Porque não tem mais medo.

VII.

Se você mentir de novo,
Vou te tirar daqui!



VIII.

Voltou do hospital
A dor era grande
Tomou um lexotan
E apagou
No dia seguinte
Soube
Que ele e ele
Ficaram acordados
À noite inteira
Ao seu lado.

15 setembro 2010

Brincando de ontem

Brincavam
ele era criança
As almofadas cobriam e descobriam os olhos
ele ria
e assim foram
até que o pequeno enfiou o dedo
nos olhos dele
riram juntos
(depois de um colírio)

Sono

Ele dorme
Pela manhã
À tarde
À noite
Não lembra os sonhos
Acorda com o maxilar dolorido
Um pouco de sangue nos dentes
Mas
volta a desfalecer
Assim não pensa
Assim nada

12 setembro 2010

Crônica matutina

Acordou
Arrumou a cama
Fez o café
Ouviu o telefone
Atendeu
Recebeu um soco
Um chute
Uma marretada
Cortaram-lhe os pés
Furaram-lhe as mãos
Abriram-lhe o peito
Deixaram as tripas
e o sangue escorrer

Não gritou
Apenas lembrou o fantasma.

01 agosto 2010

Ligaram

Eles me ligaram
- Ei, vamos?
Eu respondi:
- Estou aqui, vocês sabem.
Ouvi um grito lá do fundo:
- Não vamos para o mesmo lugar!
- E saia daí!
Fiquei calado, pensando.
Depois, rompi o silêncio
ao ouvir novos gritos:
- Eu estou aqui, como sempre.
Não sairei para qualquer canto.
Não.
Um deles, ela, berrou:
- Um "sim", de vez em quando,
pode ser apenas um "sim".
Berrei também:
- Ainda não!
E ela retornou, sussurrando:
- "Talvez" já seria um bom começo...

19 julho 2010

Fragmento de livro - A chave de casa - Tatiana Salem Levy

Poucos dias depois da sua morte, o médico telefonou para saber como tinha sido a nossa volta ao Brasil, se estava tudo sob controle. Não, eu disse, não há nada sob controle. Não há nada mais que se possa fazer, nem eu, nem você, nem o melhor hospital do mundo. Ele vacilou, gaguejou, depois ficou em silêncio. Tive receio de ouvir minha condenação pela sua voz. Achei que ele fosse dizer que a culpa era minha, que eu havia transgredido as regras, deitado na cama ao seu lado, que não tinha usado máscaras nem luvas, que não havia passado álcool suficiente no catéter antes de injetar a medicação (lembra que quando saímos do hospital eles me treinaram para ser a sua enfermeira particular?). Achei que ele fosse dizer que se eu tivesse seguido uma por uma as suas indiações você não teria partido. Quando ouvi seu silêncio, tive a certeza de que ouviria a minha sentença: culpada. Mas não, o que ouvi foram palavras inesperadas, palavras doces e carinhosas. Ele tinha se envolvido, mãe, sua carapaça tinha dado lugar a um homem enternecido.

(Trecho do livro "A chave de casa", Tatiana Salem Levy).

A morte faz o médico homem. Ou pelo menos deveria fazê-lo.

18 julho 2010

Homenagem a uma donzela

Frederico não é rico
e eu nunca o vi chupando pirulito

Fred não come biscoito
e é muito afoito

Frederico não é da martinica
mas vez ou outra tem larica

Fred tem cachos
e adora nachos

Frederico é meu chicabom
e tem gosto de bombom

Frederico namora uma donzela
que não tem cara de panela
e que come pelas tabelas

Amo Frederico, que não é rico, que não come biscoito, que é afoito, que não é da martinica, que tem larica, que tem cachos e come nachos, que é um chicabom, com gosto de bombom...

A experiência da experiência

Ontem, conheci um menino. Ele gosta tanto de falar, que perde a voz, o ar e as palavras vem pela metade, atrofiadas, emaranhadas. Ele tem sonhos, mas nao sabe quais. Ele sabe que tem sonhos. Vive. Queria jogar futebol, mas nao pode. Queria correr, mas nao pode. Ele ainda nao sabe, mas gostara de escrever, principalmente pequenos poemas. Poemas. Vive. Sente-se em paz, na praia. Disse que viraria areia, agua, ar, o azul, apenas pra ser praia. Praia. Nao conheceu os pais, nem quer conhecê-los. Vive sozinho. Perguntei como conseguia, e ele respondeu que precisa viver. E viver pra quê?, novamente perguntei. Ansioso, preferiu nao falar. Permaneceu calado, o olhar vidrado nas ondas indo e vindo, até romper o silencio. E o senhor, sabe a resposta pra essa pergunta? O senhor vive pra quê? Tremi. Estava diante do espelho. Olhei fixamente pra mim mesmo crianca, dentro do espelho. Os olhos estavam fechados, de ambos. Olhei tanto, que fiquei com sono, até adormecer, exausto no meu proprio sonho. Cheguei em mim mesmo e encontrei um par de olhos verdes, ensolarados, reflexos da cor do mar e dos raios do sol. Eles olharam fixamente e, com um bisturi, abriram meu peito, quebrando as costelas. Retiraram meu coracao e meus pulmões. Continuei vivo e eles mastigaram ate engolir cada pedacinho das minhas entranhas. O menino encontrou os olhos e eu resolvi abraca-los com os labios.

O texto pode ser produto de uma experiência.
O texto pode ser produto da fantasia.
Um mesmo texto, produto de uma experiência,
pode servir a uma outra,
e representá-la em suas linhas precisas.
Afinal, uma experiência se funde à outra,
e nós nos definimos.

A VOLTA DO CADERNO RABUGENTO" - João Ubaldo Ribeiro

João Ubaldo Ribeiro - O Estado de S.Paulo

Não sei se vocês se lembram de quando lhes falei, acho que no ano passado, num caderninho rabugento que eu mantenho. Aliás, é um caderninho para anotações diversas, mas as únicas que consigo entender algum tempo depois são as rabugentas, pois as outras se convertem em hieróglifos indecifráveis (eu sei que o recomendado é "hieróglifo", mas sempre achei que quem diz "hieróglifo" está tentando descolar alguma coisa dos dentes), assim que fecho o caderno. Claro, é o reacionarismo próprio da idade, pois, afinal, as línguas são vivas e, se não mudassem, ainda estaríamos falando latim. Mas, por outro lado, se alguém não resistir, a confusão acaba por instalar-se e, tenho certeza, a língua se empobrece, perde recursos expressivos, torna-se cada vez menos precisa.

Quer dizer, isso acho eu, que não sou filólogo nem nada e vivo estudando nas gramáticas, para não passar vexame. Não se trata de impor a norma culta a qualquer custo, até porque, na minha opinião, está correto o enunciado que, observadas as circunstâncias do discurso, comunica com eficácia. Não é necessário seguir receituários abstrusos sobre colocação de pronomes e fazer ginásticas verbais para empregar regras semicabalísticas, que só têm como efeito emperrar o discurso. Mas há regras que nem precisam ser formuladas ou lembradas, porque são parte das exigências de clareza e precisão - e essas deviam ser observadas. Não anoto, nem tenho qualificações para isto, com a finalidade de apontar o "erro de português", mas a má ou inadequada linguagem.

E devo confessar que fico com medo de que certas práticas deixem de ser modismo e virem novas regras, bem ao gosto dos decorebas. É o que acontece com o, com perdão da má palavra, anacolutismo que grassa entre os falantes brasileiros do português. Vejam bem, nada contra o anacoluto, que tem nome de origem grega e tudo, e pode ser uma figura de sintaxe de uso legítimo. O anacoluto ocorre, se não me trai mais uma vez a vil memória, quando um elemento da oração fica meio pendurado, sem função sintática. Há um anacoluto, por exemplo, na frase "A democracia, ela é a nossa opção". Para que é esse "ela" aí? Está certo que, para dar ênfase ou ritmo à fala, isso seja feito uma vez ou outra, mas como prática universal é meio enervante. De alguns anos para cá, só se fala assim, basta assistir aos noticiários e programas de entrevistas. Quase nenhum entrevistado consegue enunciar uma frase direta, na terceira pessoa - sujeito, predicado, objeto - sem dobrar esse sujeito anacoluticamente (perdão outra vez). Só se diz "o policiamento, ele tem como objetivo", "a prevenção da dengue, ela deve começar", "a criança, ela não pode" e assim por diante. O escritor, ele teme seriamente que daqui a pouco isso, ele vire regra.

E os verbos em "izar"? Não sei se vocês já notaram que há muito tempo, principalmente por escrito, ninguém vê, enxerga, discerne, descortina, ou qualquer outro sinônimo decente. Agora só se visualiza, mais nada e, em Itaparica, ouvi de um menino turista a comunicação, feita ao pai dele, de que estava visualizando de binóculo. "Vender" tem sofrido uma sabotagem inclemente por parte de "comercializar" e não duvido nada que venha a ser banido, assim como foram "pôr" e "botar". Hoje em dia, o verbo "colocar" perdeu o sentido mais preciso que tinha e substitui os dois outros, inclusive em usos tradicionais. A galinha coloca ovo, dando a impressão, para quem aprendeu o uso mais específico desse verbo, de que a galinha faz a postura (aliás, talvez devesse dizer "colocação") ajustando cuidadosamente o fiofó num canto do ninho escrupulosamente escolhido. O mesmo tipo de impressão se tem, quando se ouve no noticiário que alguém colocou fogo num barraco. Atear fogo, nem pensar. Virá o dia em que alguém vai colocar pra quebrar. E já ouvi também (ou vi escrito; com esse negócio de internet, não sei mais o que li onde) "ajustabilizar" e "ausentabilizar", este último, a julgar pelo som, um verbo que haverá de ter lá sua serventia, usado em relação ao Congresso Nacional.

"Prejudicar", com longa e honrada folha de serviços prestados ao povo brasileiro, também está no caminho célere do ostracismo. Ninguém mais é prejudicado, agora todo mundo é penalizado. Quem estiver pensando em usar a palavra no sentido antigo melhor fará se a substituir por "comiserar", enquanto esta ainda se encontra disponível, pois, no futuro, "comiserado" poderá ser a designação aplicada por alguma ONG a companheiros de miséria no Terceiro Mundo. "Personalizar", palavra com mais de cem anos de batente, agora está de aviso prévio e marchará para o esquecimento a que lhe votam os cada vez mais numerosos aficionados de "customizar". Os verbos em "ionar" também desfrutam de grande voga e um deles, "posicionar", já mandou "dispor" para o espaço. Nenhum general dispõe mais suas tropas assim ou assado, não mais se dispõem as peças de um jogo de tabuleiro. E se arruma bem menos que no passado. Acho que qualquer técnico de futebol contemporâneo ficaria ofendido, se alguém comentasse que ele arrumou seu time assim ou assado, porque ele posiciona, tudo é posicionado. Da mesma forma que "colocar", fica, por alguma razão, mais chique.

Finalmente, para não perder o costume, faço mais um réquiem para o finado "cujo". Tenho a certeza de que, entre os muito jovens, a palavra é desconhecida e não deverá ter mais uso, dentro de talvez uma década. A gente até se acostuma a ouvir falar em espécies em extinção, mas, não sei por que, palavras em extinção me comovem mais, vai ver que é porque vivo delas. E não é consolo imaginar que o cujo e eu vamos nos defuntabilizar juntos.


12 julho 2010

O porquê dos textos dos outros

Antes que alguém reclame,
eu explico:
ando lendo
e encaro minhas fraquezas
e dificuldades.
Uma delas: escrever.
Quero deixar de ser reiterativo,
por isso leio.
Um dia, quem sabe, me torno escritor
realmente.
Mas, como diria o meu bom e velho pai:
"se você não lê, como quer escrever?"

Cálice - Chico Buarque e Gilberto Gil

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...(2x)

Como beber
Dessa bebida amarga
Tragar a dor
Engolir a labuta
Mesmo calada a boca
Resta o peito
Silêncio na cidade
Não se escuta
De que me vale
Ser filho da santa
Melhor seria
Ser filho da outra
Outra realidade
Menos morta
Tanta mentira
Tanta força bruta...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Como é difícil
Acordar calado
Se na calada da noite
Eu me dano
Quero lançar
Um grito desumano
Que é uma maneira
De ser escutado
Esse silêncio todo
Me atordoa
Atordoado
Eu permaneço atento
Na arquibancada
Prá a qualquer momento
Ver emergir
O monstro da lagoa...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

De muito gorda
A porca já não anda
(Cálice!)
De muito usada
A faca já não corta
Como é difícil
Pai, abrir a porta
(Cálice!)
Essa palavra
Presa na garganta
Esse pileque
Homérico no mundo
De que adianta
Ter boa vontade
Mesmo calado o peito
Resta a cuca
Dos bêbados
Do centro da cidade...

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue...

Talvez o mundo
Não seja pequeno
(Cálice!)
Nem seja a vida
Um fato consumado
(Cálice!)
Quero inventar
O meu próprio pecado
(Cálice!)
Quero morrer
Do meu próprio veneno
(Pai! Cálice!)
Quero perder de vez
Tua cabeça
(Cálice!)
Minha cabeça
Perder teu juízo
(Cálice!)
Quero cheirar fumaça
De óleo diesel
(Cálice!)
Me embriagar
Até que alguém me esqueça
(Cálice!)

Metáfora - Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

(Fernando Pessoa)

Palpite infeliz - Noel Rosa

Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira,
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila Não quer abafar ninguém,
Só quer mostrar que faz samba também

Fazer poema lá na Vila é um brinquedo
Ao som do samba dança até o arvoredo
Eu já chamei você pra ver
Você não viu porque não quis
Quem é você que não sabe o que diz?

A Vila é uma cidade independente
Que tira samba mas não quer tirar patente
Pra que ligar a quem não sabe
Aonde tem o seu nariz?
Quem é você que não sabe o que diz?

Por você - Barão Vermelho

Por Você
Eu dançaria tango no teto
Eu limparia
Os trilhos do metrô
Eu iria a pé
Do Rio à Salvador...

Eu aceitaria
A vida como ela é
Viajaria a prazo
Pro inferno
Eu tomaria banho gelado
No inverno...

Por Você!
Eu deixaria de beber
Por Você!
Eu ficaria rico num mês
Eu dormiria de meia
Prá virar burguês...

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher...

Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!

Por Você!
Conseguiria até ficar alegre
Pintaria todo o céu
De vermelho
Eu teria mais herdeiros
Que um coelho..

Eu aceitaria
A vida como ela é
Viajaria à prazo
Pro inferno
Eu tomaria banho gelado
No inverno...

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher...

Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!

Nã Nã Nã Nã Nã...

Eu mudaria
Até o meu nome
Eu viveria
Em greve de fome
Desejaria todo o dia
A mesma mulher...

Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!
Por Você! Por Você!

Te ver - Skank

Te ver e não te querer
É improvável, é impossível
Te ter e ter que esquecer
É insuportável
É dor incrível...(2x)

É como mergulhar no rio
E não se molhar
É como não morrer de frio
No gelo polar
É ter o estômago vazio
Não almoçar
É ver o céu se abrir no estio
E não se animar...

Te ver e não te querer
É improvável, é impossível
Te ter e ter que esquecer
É insuportável
É dor incrível...

É como esperar o prato
E não salivar
Sentir apertar o sapato
E não descalçar
É ver alguém feliz de fato
Sem alguém prá amar
É como procurar no mato
Estrela do mar...

Te ver e não te querer
É improvável, é impossível
Te ter e ter que esquecer
É insuportável
É dor incrível...

É como não sentir calor
Em Cuiabá
Ou como no Arpoador
Não ver o mar
É como não morrer de raiva
Com a política
Ignorar que a tarde
Vai vadiar e mítica
É como ver televisão
E não dormir
Ver um bichano pelo chão
E não sorrir
E como não provar o nectar
de um lindo amor
Depois que o coração detecta
A mais fina flor...

Te ver e não te querer
É improvável, é impossível
Te ter e ter que esquecer
É insuportável
É dor incrível...(2x)

06 julho 2010

Na escola campeã no Rio, não há quadra nem auditório, mas livros

Publicada em 05/07/2010 às 23h58m

O Globo

RIO - Na Penha Circular, bairro da Zona Norte do Rio que está apenas 72 posição entre os que têm maior IDH na cidade, fica a Escola Municipal João de Deus, unidade com a maior nota no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) em todo o estado. O colégio é de infraestrutura simples - sequer tem quadra esportiva ou auditório. Professores do João de Deus, que tem 314 alunos entre 4 e 11 anos, contam que o sucesso tem receita simples: obrigar o contato com a literatura, incentivar a produção de textos para praticar a língua e promover mais reuniões com os pais. (Leia também: Estado do Rio é o penúltimo do ranking).

- Temos projeto de desenvolver o gosto pela leitura, desde a pré-escola até o quinto ano. Uma vez por semana, os alunos são obrigados a pegar dois livros de literatura para ler em casa - conta a diretora da escola, Luciana Landrino.

Se o Ideb fosse um campeonato, daria para dizer que a escola da Penha Circular joga com o regulamento debaixo do braço, ao incentivar a leitura. Interpretação de texto e gramática são dois dos três temas aferidos nos alunos - raciocínio lógico-matemático é o terceiro. A nota da escola (7,8) é bem maior que os 4,7 da média do estado.

Outra invenção do colégio é o "Correio escolar". No refeitório, há uma caixa em que os alunos devem depositar, toda semana, uma carta para o colega de sala. Um carteiro mirim se encarrega de fazer as entregas, e os textos são lidos em voz alta. A necessidade da escrita disciplinada, sem os neologismos dos e-mails, faz as crianças evoluírem no uso do português.

- Na João de Deus nunca tem aluno fugindo da escola, como vejo nas outras. Demorei um ano para matricular minhas duas filhas aqui, é concorrido. $de morar em Brás de Pina (bairro vizinho), prefiro que elas estudem na João de Deus, porque elas passaram a gostar de ler e a disciplina é mais rígida - conta a dona-de-casa Nilva Gonçalves Pires.

Leia também: Escolas de Cajuru entre as melhores

A diretora explica que não pode entrar aluno de chinelos, por exemplo. É uma forma de as crianças se sentirem bem tratadas pelos pais. As reuniões com os responsáveis são mais frequentes que em outras escolas da rede pública.

- Hoje em dia, os pais passam a responsabilidade da educação para a escola. Nas reuniões, explicamos que não é assim - diz a diretora Luciana.

A exemplo do que já houve em 2007, os funcionários esperam ganhar a gratificação do 14 salário, por causa de outra boa colocação no índice. Em média, um professor ganha R$ 983,80 para dar aula numa escola municipal como a vencedora do Ideb.

Maldito adolescente

Quero um pouco de texto pra escrever
Mas ele não quer
Criei um adolescente rebelde
ele escreve quando bem entende
E a vontade narcisista é tão grande
Que nada vai ser escrito tão cedo.
Vou montar uma jaula
e deixá-lo preso
vendado
e mudo.
Assim, talvez, eu possa falar.

20 junho 2010

Cerveja

(Não é um incentivo ao alcoolismo)

Enquanto está estranho
Difícil de saber as razões
Quando se pensa muito
E poucas são as opções
Enquanto não se reconhecem os sons
Os rostos
As falas
As roupas
Os lugares
As pessoas
Quando está um frio quente
E o suor vira produto do inconsciente

Um copo cheio
Quase transbordando
Muito gelado
No centro da mesa
Basta olhar pra ele
A boca saliva
Os olhos vêm brilhando
Deixa-se de pensar
De estranhar
E suar sem sentido

O gole
E o corpo responde em doses de afastamento
Tudo ao redor ganha ares de indiferença
Tanto que o copo e ele vivem entre si
Como uma criança que aprende a boiar no mar
Em dia de calmaria.

17 junho 2010

Um fonema

De quem são os poemas?
Rio de janeiro.
O rio está sempre em janeiro
Inclusive em janeiro é o seu dia.
Risos e mais risos
Rios e mais rios
Um fonema rascante
rigoroso
retumbante.
Será sempre o som
dos sambas poéticos.
Rio.
Rio.
Rio.
R.

09 junho 2010

Um samba e uma saudade

Sai
pra beber
umas cervejas.

Você chegou
e sentou na mesa
ao lado.

Eu cheguei
você veio
Eu cheguei
você veio.

Estávamos na Lapa.
Cerveja de garrafa.
Suor. Calor.
Mesas pequenas.
Calabresa.
Batatas fritas.
Salaminho.
Feijãozinho.
Pessoas,
enfim...

Você veio
pediu licensa
e me acompanhou

Depois de um tempo
Falou:

- que saudade!
(você fez falta!)

"Quem não gosta do samba
Bom sujeito não é
É ruim da cabeça
ou doente do pé"

Você cantou a noite toda.

Uma relação promíscua (porém, feliz).

Entrei
abracei a menina
e trouxe ela pra casa.

Não precisei conversar
Nada de jantar
Sem carinho
Nada de flores
Sem expectativas
Nada de conquista
Sem paixão
Nada de dores
Sem dissabores
Nada de mentiras
Nada de mentiras
Sem cinismo
Sem cinismo

Resolvemos namorar
e foi sexo
sexto, simplesmente.

Nossa linguagem
perfeita
era o corpo
Vivemos em paz
por anos
nem eu
nem ela
vestíamos personagens
Ela nunca quis ser
além de si
e mentir com a pele.

A prostituta foi honesta
nunca fingiu ser
(A prostituta).

O espaço que se ocupa

Enquanto você me deixava
outra se aproximava
discreta,
sem alarde,
humilde
e despretensiosa.

Veio de calça jeans
blusinha branca
havaianas
andando
e sorrindo.

Tinha convicção
Sabia o que era
e tinha certeza
do seu espaço:
nunca temeu viver.

Seu nome:
simplicidade.

Um murro, um pontapé, um discurso

Cazuza deveria estar entre as pessoas
um pouco de provocação
o espinho da inquietude
a vontade de vida
o desejo de experimentar
a abertura plena para o novo
o desmascaramento da hipocrisia
desregrado
porra-louca
anti-burguês
fragmentado
inconsequente
desgovernado
descentralizado
inconstante
como ele diria:
exagerado

Ele gera medo
nos castelos de cristal
supostamente indestrutível
mas visivelmente frágeis e ocos
prontos a implosão

Ele gera pavor
pela destruição da previsível
rotina
nos castelos
da monotonia da acomodação
suspira pelo concreto
e anseia pela máquina.

Um corpo de linhas tênues

Na poesia me disfarso
para me ver invisível

quero estar nas entrelinhas
de metáforas me componho

Quero ser o prazer
sem o toque

Quero ser formas
em cada leitor

Sou uma prostituta
que não faz sexo
nem mostra o corpo
não toca
não dança
mas incita a desrazão
no prazer incorpóreo
da linguagem poética:
a sugestão.

Uma doce morte

No dia que te conheci
tive um espasmo
vomitei tanto
que até hoje
meses depois
sinto o estômago latejar
e a garganta arranhar.

Quando te conheci
Me vi um rato
Me senti sujo
um animal despresível
o pior deles
inescrupuloso
Até hoje não me livrei do fedor
nem me despi do caráter.

Quando te vi
virei um limão
fiquei ácido
e amargo
como um doce de morte
que comi cada pedaço
até me ver
um homem.

Viciado

Me encontrei entre
cachaças
Várias doses espalhadas
pela casa
no carro
no trabalho
até na praia

Sonhava com copos
cheios
cheiro forte
Lá os copos
ficavam em mim
Aqui, eles ainda estão
mas o líquido evaporou
das bordas
que transbordavam
Agora,
O copo pode ser tocado
sem derramar
A mesa pode balançar

(Eu poderia virar o copo
e seguir
em frente
mas o conteúdo permaneceria
em mim

s e m e v a p o r a r).

O antes O agora O eu

Você voltou
e agora o tempo anda
sereno
sem pressa

Me apanhou nos braços
me deu beijos com os olhos
e carinho em palavras

Você voltou
Você voltou

Me sentiu na solidão acompanhada
Sensível
pressentiu meu choro silencioso
e bebeu minhas lágrimas desnecessárias

Me levou a um lugar alto
onde o vento frio soprava no rosto
enquanto o horizonte
varria o antes
e refazia o agora.

Você voltou
Você voltou

Os dias distante
pareciam um sem fim de nádegas
e seios

Os dias sem você
foram um mal descartável
porque longe
houve a cegueira em tempos
de cólera

Você voltou
e os dias em você
lavam o equívoco

Você voltou
e nos escolhemos:
seja o que puder
você voltou
e trouxe
a despretensão.

Hoje

Ontem estava assim
Hoje está agora
E amanhã estará hoje
Como nunca deveria ter deixado.

02 junho 2010

Uma morte pedagógica

Desci ao inferno da terra
e conversei com a morte.
Até que ela não é tão assustadora assim...
Inclusive me ensinou algumas coisas
Como andar em pregos
Deixar cada um atingir os ossos
E depois retirá-los
Sem pressa
Vendo o sangue escorrer.

01 junho 2010

Hoje não é mais ontem



No centro
e sozinho
Vou ao encontro
do porvir
Em nome de mim
e pelo abrigo
do desconhecido.
Encontrei o abraço:
no excêntrico espaço
da loucura.
Onde vivem os grandes
de onde correm os fracos.

Não

Hoje foi o primeiro dia
Sem ver o pôr do sol.
Vim direto pra casa depois do trabalho.

Uma crônica anunciada.

A outra roupa

Pedro vestiu as roupas
tomou seu café
e saiu pela porta.
Sentiu uma coisa estranha
mas não sabia o que era.
Trabalhou e voltou.
Em casa, trocou as roupas,
e viu que estava no quarto errado
com as roupas de outro nome:
Paulo.
Alguns meses,
esteve no quarto de Paulo
com as suas roupas.
Preferiu, neste dia,
andar nu.

25 maio 2010

Conto gotas mastigo sombras

Vou contando
Inspiro
Expiro
Inspiro
Expiro
...
...
...
Quando os números se perdem
O ar já se foi
e está tudo negro...
Neste lado obscuro
Penumbra e sombra
Vejo os dias erguendo muros
Um a cada hora
e as lembranças se isolam
Uma e outra
O garoto serelepe
O menino falante
A criança alegre
O moleque curioso
O baixinho atarracado
O miúdo afetuoso
Elas se deixam
em farpas cravadas entre as unhas
Uma gota escorre
Outra
...
...
...

O sangue muda de tom
escurece
ganha densidade,
arranca as farpas,
coagula o tempo ,
demole as paredes
e se vai em cálice:

Bebo ar
mastigo sombras.

10 maio 2010

A carne animal

Olhos nos olhos
Lábios nos lábios
Corpo que age
Razão que reage
O corpo vence
A razão sucumbe
A carne faminta engole o beijo
Transforma-o em alimento
Sacia o desejo
E dorme.

05 maio 2010

O conteúdo

O que tem dentro da garrafa?
"Para saber,
Basta abri-la".

Não quero vê-la sem tampa.
Pelo menos por enquanto,
Eu acho.

É necessário saber o conteúdo?
Por quê?

Vou abri-la.
Não, não vou.

“Deixe-a fechada.
Fechadinha”.

A garrafa não é totalmente
Transparente.
Vejo a imagem do conteúdo.

Pus os óculos.
Comprei uma lente.
Fiz uma luneta.
Nada.

Ainda existe a garrafa.
O vidro entre mim e o conteúdo.
Posso abri-la ou quebrá-la.

?
Uma pontuação insistente.

04 maio 2010

A lâmina

Recebi um bisturi
de mãos alheias

Cravei a lâmina no tórax
Rasguei a pele
Quebrei os ossos
Até o meio do peito

Com as mãos
Abri a caixa torácica

Talhei outro nome
Em minhas artérias
E mudei a forma de meu coração

Cheguei até os pulmões
E bloqueei a entrada
A saída
E a presença do ar
Fosse carbono
Fosse oxigênio

O bisturi
O bisturi
O bisturi
O bisturi
O bisturi
O bisturi
O bisturi

As imagens
Turvas
Os olhos pularam
A garganta trincada
O sangue explodindo na cabeça
Saindo pelos poros

O bisturi
O bisturi
O bisturi
O bisturi

Eu aceitei
Não me obrigaram
Mas não é meu
Não sou eu.

Por isso,
Vou respirar.

26 abril 2010

O som do poeta em surdas melodias faladas

Em meus sonhos de escritor,
acordei no próprio sono,
ao lado dela.

Não tinha rima,
não tinha métrica,
nem precisava de ritmo;

era a simples poesia,
que se faz na melodia da fala,
no som do tempo,
no tom das horas,
no sangue do agora,
que é o quando-sempre do poeta.

Entre, você!

A morte se encontra na vida
Minha vida é refém do fim
Esta morte é mais do que sabida
Vaga inteira dentro de mim

Os dias somem no infinito do tempo
As palavras sorriram antes
Amanhã não são mais do que instantes
A correr sem direção

Os sons que voam pelo vento
Se tornaram frustração
Depois do amor vivente
Soluçamos pelo fim da recordação

Seria eu um morto-vivo?
Estaríamos nós ainda entrelaçados?
Seria eu um doido-varrido?
Estaríamos nós à espera da solidão?

Não pergunte aquilo que conheces
Não questione a ilusão
Só sabes quando cresces
Na presente indagação

Rimar não mede o esforço das palavras
Minha incapacidade é gritante
Tanto que agora me desfaço do sonho
De ser além de poeta

Não há espírito que suporte
Minha completa inanição
Sou eu refém do acaso
Antes protegido da dor

Maldita hora que soltastes as rédeas do seu amor
Me envolvestes no teu corpo
Como o mar em turbilhão
Aturdido me pus à deriva
Levado pela sonho da escuridão

Antes eu era
Agora não sou
Tenho medo do tempo que me espera
Quero me livrar desta dor

Não me confesso para o mundo
Escrevo para conter meu torpor
Serei um belo canalha
Se correr para os lados do amor
Sem querer amar quem não sou

Se isto faz sentido
Não sei
Quero apenas um motivo
Para sofrer outra vez

Porque sem sofrer não há lágrimas
Sem lágrimas
Não há amor
Dos pés congelados
Do estômago faminto
Me vejo atacado pelas doses de uísque
Que me acompanham neste trânsito
Entre a poesia e a prosa

Um único dia só

Meu pai queria um filho.
Bem, ele veio:
Tinha uma perna enviezada.
Os olhos cor de mel.
Os cabelos crespos.
Criança grande, cabeluda
e pesada.
Logo veio e partiu.

Nuvem desgarrada.
Assiste à luta selvagem
Seus pares que duelam às foices.
Tênue tensão que os separa
Une intrínsecos
E ela, lá, perdida
Firme na sua solidão voluntariosa
Abstrai a vida
Então triste
Então só
Então pura
Então só
É um sofisma
Malícia de Miles
Requinte de Dizzy
Ela é Coltrane
Humana demais
Sensível
E só
Humana demais
É o próprio Coltrane
Enleva-se
Vestida de branco
Voa
Rastro no céu
Forma nuvens
Se perde
E lá está ela:
Sentada, quieta
e só.
Mescla de nuvens
e John:
toda de branco.

Artérias, veias e coração devorados

Engoli meu coração
e ainda foi sem respirar.
Ainda pulsando
pude senti-lo pensar.
Mas como?
Lógica e sentimentos?
Então, discutimos,

E o coração tomou a palavra:
- Sinto o azedume do estômago
Tenho a pele rompida
As artérias interrompidas
Meu sangue agora é nostalgia
Penso porque me contorço.
Não me deixe pensar no escuro
do silêncio
Voz antes sonora, grave
Agora metálica, no fim.
Fujo de mim para não vê-lo
Ligeiro, vago para onde

Longe
Escondido em tua impressão
Está quase a minha presença
Mas estar para não perpetuar
É um não-ser absoluto.
Um morto no seio do corpo aquecido
Um paradoxo camoniano
Aqui arde, ali eu vejo
E quero mais
Durmo para que minhas impurezas
Se diluam até tomar forma de idéia
E partir para a inexistência do sentir
O coração me disse
E eu continuo...

Um monumento à Poesia

Uma nota de dois olhares sem

O tempo parou e o espaço ficou. Fixaram-se dois olhares no sonho. Antes, contudo, chegaram dois olhos calados. Estes viram disposição no outro, porque sensíveis ambos. Duas atitudes de alma. Duas.

Confiaram desconfiados pela presença dos dois, um no outro; o sentimento inconsciente que vinha preencher a ausência. Ausentes eram até o encontro. Era preciso.

...
...
...
...

O silêncio que marca a respiração, o coração palpitante, o medo, o frio na barriga... Os olhares se buscam, se veem, de longe, desejam. O som sem voz produz o sorriso, a cor dos olhos, a perversidade, o cinismo, a ironia, a sinceridade. Querem estar, no tempo sem tempo, do espaço sem matéria, quando tudo é nada e se torna um absoluto.

Um tempo que fica e um espaço que marca. Os olhares desvendam-se na voz de longe, na madrugada, precisam do cheiro, do abraço, do toque, do outro. Imaginam, deliram, fantasiam, tem medo. Sem medo não se vai, permanece-se estático, aprisionado no tempo e espaço vulgares, porque aquele passa e este se define. Os olhares não têm pretensão, apenas sensação. Sentem como se o tempo de ver fosse maior do que as duas vidas que se encontraram.

Uma lágrima escorre do olhar. Triste pode estar, mas não, não é melancolia, está diante do olhar que fica duro quando cansado. E quanta beleza se vê no seio deste que enxerga até o mais recôndito mistério.


Um poema para a poesia

Você veio de mansinho
Calada como uma noite estrelada
Jogou-se no precipício sem perceber
E me deu as mãos
Pediu baixinho pra que fôssemos juntos
E eu me deixei voar

Estamos vagando pela vida
Como duas crianças encantadas pelo mundo
Descobrindo leves
Ávidos por cada novidade
Surpresos por tanta presença
Assustados pela veloz profundidade
Que só aumenta
Estamos nos tornando experientes
Ainda no berço do sem fim
Fizemos do medo dos mais velhos
Desejo

Do olhar para a poesia

Você me veio em forma de olhar
Mas vai ficar pela ideia
Com uma nomeação sublime:
Poesia.

25 abril 2010

Ele se perdeu na ficção

Um dia eu tive um amigo.
Ele viajou tanto que virou um avião.
Suas asas ainda estão pelo ar.
Sua barba virou nuvem.
Sua barriga agora é chuva.
Ele se perdeu entre o azul e as gotas de palavras
Que
Uma a uma
vêm discutir a existência metafísica do caos
o amor sublime das borboletas
o interior carregado das rosas murchas diante do sol
a vida insana dos homens de pernas e vento
o lado grotesco da cerveja carcomendo os estômagos alheios
os petiscos e sua função redentora para o organismo
o poder da barba como espectro da sociedade patriarcal...

Meu amigo se perdeu
e eu fui com ele
no seio da ficção.

01 março 2010

Os nomes da imprevisibilidade

Entre o espelho e o homem
existem as palavras
Mas entre elas e a experiência
surge a poesia
que sem a metáfora
inexiste para a Literatura

Da imaginação criam-se
o Beija-Flor e o Rubi
que juntos formam a imagem
da Liberdade e da Beleza
Sensíveis apenas ao homem marginal
Único capaz de ver além de si mesmo.

Ele nunca viu o fim do arco-íris
Mas como ver
pode ser a exposição do próprio sonho
O senão do fim
se abriga entre olhar e imaginar.

23 janeiro 2010

A imagem desaparecida

Os olhos cegos
viram o espelho
e a imagem desapareceu

Uma lágrima escorreu do verde-mel
Em forma de castanha, castanha escura

E as cores foram no vento

A imagem está onde as cores se formaram.

15 janeiro 2010

Múltiplas imagens

Fred como personagem
Frederico como identidade
Mas, e agora, paguzzi?