22 setembro 2010

O mundo é um moinho - Cartola

Ainda é cedo, amor
mal começaste a conhecer a vida
já anuncias a hora da partida
sem saber mesmo o rumo de irás tomar

Preste atenção, querida
embora eu saiba que estas resolvida
em cada esquina cai um pouco a tua vida
em pouco tempo não serás mais o que és

Ouça-me bem, amor
preste atenção
o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó

Prete atenção, querida
de cada amor tu herdarás só o cinismo
quando notares estás a beira do abismo
abismo que cavastes com teus pés.

Nada, nunca, jamais

Dia "um".
Dia "três".
Dois dias
em um mês de novidades
Encontrou a porta lacrada
Passou a corrente
cuspiu a chave dos cadeados.

Notas de burocracia sentimental

Esqueceu a data
Arquivou o amor.

Autofagia

Arrancou o couro cabeludo
Queria ver o cérebro no espelho
Examinou
Procurou
Irritou-se

Encontrou:
retirou os dias de ontem
ficou satisfeito
mas eles voltaram
e ele...
arrastou a cabeça no muro...

Inconstância

O dedo no gatilho do tempo
em direção ao espelho

A imagem que escorre
vem em névoas

A imagem que se finca
vem em pedras

Imagem
pedra
névoa

16 setembro 2010

Crônicas de ontem

I.

Escrevem na parede
As primeiras sílabas
T com A

P com O

V com u
VU.
P com a
PA
(ainda não sabe PA com I...)

II.

Acordava
Madrugada
Som alto
Sala da casa
Ele ouvia Coltrane
Wagner
João
Assustado
Andava
Abria a porta
Outra
Andava o corredor
Puxava sua camisa
E pedia:
- Pai,
Abaixo um pouco...

III.

Vasco e Vitória
Vitória 1 a 0
O jogo?
Não viu...
Olhava tudo
As cadeiras
A pilastra na frente delas
As pessoas
Os gritos
O mar de gente a sua frente
Um pouco frio
Alguns jogadores
Um juiz
E ele ao seu lado.

IV.

Tinha feito algo errado
Ele estava irritado
Precisava repreender
Veio ao quarto
Daria um tapa
Na bunda

Quando o viu entrar,
Começou a pular
Dizendo:
- não me bate não
Não me bate não
Não me bate não
Não me bate não
Não me bate não

Da porta, começou a rir.

V.

Sempre que ficavam de castigo
Um deles começava
- Posso ir ao banheiro?
O outro
- To com fome!
Até que o pai
Gritava
- Tira esses meninos dai!

VI.

Tinha medo de não saber
Ele sabia
Quando não sabia
Inventava que sabia
Agora que sabe
Não inventa mais,
Porque não tem mais medo.

VII.

Se você mentir de novo,
Vou te tirar daqui!



VIII.

Voltou do hospital
A dor era grande
Tomou um lexotan
E apagou
No dia seguinte
Soube
Que ele e ele
Ficaram acordados
À noite inteira
Ao seu lado.

15 setembro 2010

Brincando de ontem

Brincavam
ele era criança
As almofadas cobriam e descobriam os olhos
ele ria
e assim foram
até que o pequeno enfiou o dedo
nos olhos dele
riram juntos
(depois de um colírio)

Sono

Ele dorme
Pela manhã
À tarde
À noite
Não lembra os sonhos
Acorda com o maxilar dolorido
Um pouco de sangue nos dentes
Mas
volta a desfalecer
Assim não pensa
Assim nada

12 setembro 2010

Crônica matutina

Acordou
Arrumou a cama
Fez o café
Ouviu o telefone
Atendeu
Recebeu um soco
Um chute
Uma marretada
Cortaram-lhe os pés
Furaram-lhe as mãos
Abriram-lhe o peito
Deixaram as tripas
e o sangue escorrer

Não gritou
Apenas lembrou o fantasma.