26 abril 2010

O som do poeta em surdas melodias faladas

Em meus sonhos de escritor,
acordei no próprio sono,
ao lado dela.

Não tinha rima,
não tinha métrica,
nem precisava de ritmo;

era a simples poesia,
que se faz na melodia da fala,
no som do tempo,
no tom das horas,
no sangue do agora,
que é o quando-sempre do poeta.

Entre, você!

A morte se encontra na vida
Minha vida é refém do fim
Esta morte é mais do que sabida
Vaga inteira dentro de mim

Os dias somem no infinito do tempo
As palavras sorriram antes
Amanhã não são mais do que instantes
A correr sem direção

Os sons que voam pelo vento
Se tornaram frustração
Depois do amor vivente
Soluçamos pelo fim da recordação

Seria eu um morto-vivo?
Estaríamos nós ainda entrelaçados?
Seria eu um doido-varrido?
Estaríamos nós à espera da solidão?

Não pergunte aquilo que conheces
Não questione a ilusão
Só sabes quando cresces
Na presente indagação

Rimar não mede o esforço das palavras
Minha incapacidade é gritante
Tanto que agora me desfaço do sonho
De ser além de poeta

Não há espírito que suporte
Minha completa inanição
Sou eu refém do acaso
Antes protegido da dor

Maldita hora que soltastes as rédeas do seu amor
Me envolvestes no teu corpo
Como o mar em turbilhão
Aturdido me pus à deriva
Levado pela sonho da escuridão

Antes eu era
Agora não sou
Tenho medo do tempo que me espera
Quero me livrar desta dor

Não me confesso para o mundo
Escrevo para conter meu torpor
Serei um belo canalha
Se correr para os lados do amor
Sem querer amar quem não sou

Se isto faz sentido
Não sei
Quero apenas um motivo
Para sofrer outra vez

Porque sem sofrer não há lágrimas
Sem lágrimas
Não há amor
Dos pés congelados
Do estômago faminto
Me vejo atacado pelas doses de uísque
Que me acompanham neste trânsito
Entre a poesia e a prosa

Um único dia só

Meu pai queria um filho.
Bem, ele veio:
Tinha uma perna enviezada.
Os olhos cor de mel.
Os cabelos crespos.
Criança grande, cabeluda
e pesada.
Logo veio e partiu.

Nuvem desgarrada.
Assiste à luta selvagem
Seus pares que duelam às foices.
Tênue tensão que os separa
Une intrínsecos
E ela, lá, perdida
Firme na sua solidão voluntariosa
Abstrai a vida
Então triste
Então só
Então pura
Então só
É um sofisma
Malícia de Miles
Requinte de Dizzy
Ela é Coltrane
Humana demais
Sensível
E só
Humana demais
É o próprio Coltrane
Enleva-se
Vestida de branco
Voa
Rastro no céu
Forma nuvens
Se perde
E lá está ela:
Sentada, quieta
e só.
Mescla de nuvens
e John:
toda de branco.

Artérias, veias e coração devorados

Engoli meu coração
e ainda foi sem respirar.
Ainda pulsando
pude senti-lo pensar.
Mas como?
Lógica e sentimentos?
Então, discutimos,

E o coração tomou a palavra:
- Sinto o azedume do estômago
Tenho a pele rompida
As artérias interrompidas
Meu sangue agora é nostalgia
Penso porque me contorço.
Não me deixe pensar no escuro
do silêncio
Voz antes sonora, grave
Agora metálica, no fim.
Fujo de mim para não vê-lo
Ligeiro, vago para onde

Longe
Escondido em tua impressão
Está quase a minha presença
Mas estar para não perpetuar
É um não-ser absoluto.
Um morto no seio do corpo aquecido
Um paradoxo camoniano
Aqui arde, ali eu vejo
E quero mais
Durmo para que minhas impurezas
Se diluam até tomar forma de idéia
E partir para a inexistência do sentir
O coração me disse
E eu continuo...

Um monumento à Poesia

Uma nota de dois olhares sem

O tempo parou e o espaço ficou. Fixaram-se dois olhares no sonho. Antes, contudo, chegaram dois olhos calados. Estes viram disposição no outro, porque sensíveis ambos. Duas atitudes de alma. Duas.

Confiaram desconfiados pela presença dos dois, um no outro; o sentimento inconsciente que vinha preencher a ausência. Ausentes eram até o encontro. Era preciso.

...
...
...
...

O silêncio que marca a respiração, o coração palpitante, o medo, o frio na barriga... Os olhares se buscam, se veem, de longe, desejam. O som sem voz produz o sorriso, a cor dos olhos, a perversidade, o cinismo, a ironia, a sinceridade. Querem estar, no tempo sem tempo, do espaço sem matéria, quando tudo é nada e se torna um absoluto.

Um tempo que fica e um espaço que marca. Os olhares desvendam-se na voz de longe, na madrugada, precisam do cheiro, do abraço, do toque, do outro. Imaginam, deliram, fantasiam, tem medo. Sem medo não se vai, permanece-se estático, aprisionado no tempo e espaço vulgares, porque aquele passa e este se define. Os olhares não têm pretensão, apenas sensação. Sentem como se o tempo de ver fosse maior do que as duas vidas que se encontraram.

Uma lágrima escorre do olhar. Triste pode estar, mas não, não é melancolia, está diante do olhar que fica duro quando cansado. E quanta beleza se vê no seio deste que enxerga até o mais recôndito mistério.


Um poema para a poesia

Você veio de mansinho
Calada como uma noite estrelada
Jogou-se no precipício sem perceber
E me deu as mãos
Pediu baixinho pra que fôssemos juntos
E eu me deixei voar

Estamos vagando pela vida
Como duas crianças encantadas pelo mundo
Descobrindo leves
Ávidos por cada novidade
Surpresos por tanta presença
Assustados pela veloz profundidade
Que só aumenta
Estamos nos tornando experientes
Ainda no berço do sem fim
Fizemos do medo dos mais velhos
Desejo

Do olhar para a poesia

Você me veio em forma de olhar
Mas vai ficar pela ideia
Com uma nomeação sublime:
Poesia.

25 abril 2010

Ele se perdeu na ficção

Um dia eu tive um amigo.
Ele viajou tanto que virou um avião.
Suas asas ainda estão pelo ar.
Sua barba virou nuvem.
Sua barriga agora é chuva.
Ele se perdeu entre o azul e as gotas de palavras
Que
Uma a uma
vêm discutir a existência metafísica do caos
o amor sublime das borboletas
o interior carregado das rosas murchas diante do sol
a vida insana dos homens de pernas e vento
o lado grotesco da cerveja carcomendo os estômagos alheios
os petiscos e sua função redentora para o organismo
o poder da barba como espectro da sociedade patriarcal...

Meu amigo se perdeu
e eu fui com ele
no seio da ficção.