21 novembro 2006

A caminho do inferno

Sugestão do editor de minha revista: escreva sem romantismo, enxugue seu texto como o deserto absorve a energia vital do homem. Seu carisma é a sua síntese, o seu pressentimento das vontades superficiais daqueles que pouco lêem além dos letreiros, e propagandas de liquidações de roupas e celulares será o crescimento de sua carreira. Não se deixe envolver por aquilo que escreve, sinta apenas dentro de ti, não em seu texto. Acomode-se no escritório, limpe a mesa, e seja pragmático como um comerciantes português. Não, não precisa voltar no tempo: tenha o espírito dos judeus americanos, assim ser tornará um exímio fazedor de dinheiro. Eis aqui a sua meta: nos tornar ricos.

Agora faça o que combinamos porque para além do seu texto não há nada que preste, só ingenuidade e pieguice. Escute o que digo pois desta maneira tornar-se-á nosso grande investimento, pense nisso, seja prático uma vez na vida.

Depois de ouvir as palestras de meu chefe durante dias sobre como deveriam ser meus textos, parti para minha investida no congresso internacional a que me enviaram como principal jornalista de nosso pequeno jornal. Ainda não tenho idéia de como será minha conduta, mas preciso ficar quieto algumas horas para rever alguns papéis, ler um pouco, para depois me decidir. Estou ainda inquieto, tenho receio de ser demitido, me sinto incapaz de adaptar-me a esta imposição. Enfim, deixem-me a sós, preciso de silêncio por alguns dias.

Contem com minha presença diária, apenas pelo prazer do texto, pelo menos é assim que me lanço no silêncio da solidão agreste que me tornaria Paulo Honório, não fosse minha angustiosa excentricidade. Não sou personagem, nem mesmo narrador, sou apenas um homem em viagem escrevndo para não se ver só. Por isso não termino, me despeço tantas vezes, pois a saudade já corre em mim, como chuva torrencial. Onde estão todos agora que não há nada além de mim mesmo e deste onibus que me espera? A resposta é óbvia, por isso continuarei mais tarde, para poder aproximar-me de todos uma vez mais (creio que será inviável seguir os passos propostos pelo meu editor, meus sentidos se valem do poder das palavras, não de sua objetividade, acho que deste modo serei realmente demitido...).

15 novembro 2006

Um apelo aos deuses

Do sorriso extraio um desejo que transformado pelo tempo atrai o ódio. Neste rosto de angélicas linhas está desenhado o poder da devassidão, mas ainda não descobri que força é esta que me lança ao corpo do sentimento ardiloso que é o amor, mesmo que seja vil sua essência, mesmo que se torne um martírio, mesmo que seja uma eterna reprodução de minhas neuroses, mesmo que seja apenas a redundância que me impede de ver o óbvio que caminha ao meu lado, mesmo que ele seja eu mesmo em conflito pelo amor-próprio. Mesmo que nada disso seja real, eu sou produto de mim mesmo em profusão detestável pelo encontro da minha figura menos rude, sem minhas brutalidades, sem minha impulsão. Duvido neste ponto de mim mesmo, porque se me falta o ímpeto, me descontruo, sou uma imagem refletida em um espelho disforme, é um fim inevitável para minha existência tensa e fugaz. Se me querem como qualquer um que vaga pelas estradas sedentos pelo trato com o outro apenas na carne e no sabor, me suicidarei o quanto antes, para descobrir se noutro espaço existir faz algum sentido. Entretanto, minha vida é minha consciência, por isso não me rendo, e leio, porque na leitura encontro as profundezas obscuras que me constituem enquanto homem. São mulheres e homens que permeiam este imaginário, excêntrico para alguns, piegas para muitos, ingênuo para o mundo. Se me chamam "Idiota", isto só me faz envaidescer, porque me vejo inserido no universo dostoievskiano como aqueles que serão personagens para além de seu tempo, percorrendo as intempéries do tempo humano, transformando pensamento e vida. Se me chamam "Ingênuo", preciso rapidamente escrever um livro e utilizar este adjetivo como título de uma obra que consagrará uma criatura a viver pelos outros. Assim me destituo do comprometimento com podres cordas para morrer em vida e buscar destruir o ressentimento, romper com os limites que nos obrigamos a seguir, somente para me reconstruir e devolver ao homem a noção do pecado original: a maçã tem que ser nosso alimento, o símbolo do amor pelos outros, como a nós mesmos.

Inspiração - Vinícius

Este seu olhar

Este seu olhar
Quando encontra o meu
Fala de umas coisas
Que eu não posso acreditar

Doce é sonhar
É pensar que você
Gosta de mim
Como eu de você!

Mas a ilusão
Quando se desfaz
Dói no coração
De quem sonhou, sonhou demais

Ah! Se eu pudesse entender
O que dizem os seus olhos...

Eu sei que vou te amar

Eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida
eu vou te amar
Em cada despedida eu vou te amar
Desesperadamente, eu sei que vou te amar
E cada verso meu será
Prá te dizer que eu sei que vou te amar
Por toda minha vida
Eu sei que vou chorar
A cada ausência tua eu vou chorar
Mas cada volta tua há de apagar
O que esta ausência tua me causou
Eu sei que vou sofrer a eterna desventura de viver
A espera de viver ao lado teu
Por toda a minha vida

Primeiro Ato - Dioniso

Seria um dia qualquer essa segunda. Entretanto, morri, e agora ouço vozes que me perturbam a tranqüilidade aqui, onde achei que seria o não-ser. Há dois velhos e uma senhorita, além de uma quase morta idosa, que insistem para que eu volte à Rua do Meio, no interior deles. Não entendo o que dizem, suponho através dos movimentos que fazem com as mãos, creio que a me chamar. Eu, daqui, desse nada, onde tudo é incolor e indolor, sinto um feixe de luz do sol aquecendo parte de minha consciência. Não tenho corpo, sou um emaranhado de sensações e lembranças, como se os dias estivessem trancafiados em minha impossibilidade de perceber a intenção, devido ao meu estado de vazio. Nem mesmo o ar me acompanha por esses lados, estou mais comigo do que quando na terra me deixava ficar entorpecido de álcool sozinho no quarto dos fundos da pensão onde sempre morei. Recordações fugidias aparecem e correm, velozes como o vôo de um beija-flor. Não posso mais conceituar meus sentimentos, porque daqui apenas o passado inatingível me ocorre. De nada esqueço, cada detalhe me entope não sei que parte, só sei que de alguma maneira tendo a explodir. Algo será lançado para os ares, preciso de uma festa agora mesmo. Será possível chamá-los, uma vez que só eles me vêem? Creio ser uma virtude aproximar-me deles, assim, derrepente, este estranho caminho possa ser trilhado, porque aqui não há nada além da minha eterna memória.

Resolvi ir ao encontro deles. Já estavam em festa: ouvia gritos e urros por toda parte, além de muita comida e de bebida espalhada pelos cantos. Parece-me que eu estava deitado no centro do salão principal, onde todos ritualizavam alguma passagem, celebravam meus olhos que se abriam como o dia nascendo. E o dia estava realmente sendo criado, era aquele o instante da geração da terra, do homem, dos animais, dos rios e dos mares, estrelas e mulheres... Pude enfim respirar, reconhecendo um perfume que me vinha à lembrança mas que era irreconhecível no não-ser. Minha lenta respiração, cujos movimentos pulmonares seguiam sua tranqüilidade, era pura e bela, minhas virtudes escapavam pelos poros, sensação que contagiava o ambienta, provocando euforia. O perfume, bem, dele eu já ia me esquecendo, este sim foi o motivo da cantoria geral. Perceberam que todos se libertavam, corriam, podiam agora se despir das roupas e tornarem ao primitivo instinto dos animais: sentir, comer e procriar. Todos ali se puseram em espírito dionisíaco, banhando-se em vinho, lançando-se uns aos outros como eternos amantes, sem aguardar o futuro, para eles não havia objetivo, apenas viver.

T.M - Segundo Ato - Adoração

Quando o amor é revelado pelas clássicas palavras “Eu te amo”, há um descontrole eufórico que atordoa e faz o chão desabar. Somos lançados numa existência diferente, acredito que quase plena, porque instigada pela presença do sentimento do outro, a deseja-lo, e querer de ti a fugaz tentação de um belo e simples sorriso em mais um dia qualquer. Divide-se o corpo pelo centro, tornamo-nos o outro e nós, trancafiados na carapaça sentimental que se instaura no ato de sedução e na consumação da imutabilidade do encontro dos olhares, que, diante do frêmito do coração, inquieto para além das necessidades físicas, afeito aos mais ordinários movimentos, aguardando um breve lampejo de sensibilidade para completar-se como uma entidade apocalíptica que destrói o orgulho, a desunião, a maldade, para existir em comunhão com o amor que cerca ambos os corpos. O sol se torna um ser mais do que vivo, sempre a aquecer e brilhar nalgum canto, mesmo que aos meus olhos venha a lua, sua luz é produto solar, estrela maior que abraça a pequena prata vagando pelo céu acompanhada pelo afago afetivo que de muitas mãos e extensões acolhe a tudo e a todos. É o símbolo do amor pelos homens, pelos cães e pelas árvores, porque de si a vida explode em desesperada correria, em tempo curto crescemos e nos transformamos, até tornarmos ao estado natural: a terra. Ela, devidamente aquecida, faz voltar a vida novos corpos, novos seres, novas consciências, que sozinhas rumam como cadáveres, sendo os dias e noites um ciclo vicioso de letárgica ausência de sentido, a espreita, inconscientes na busca pelos olhos, e que olhos. Se os olhos não vêem, é do interior que a visão sente, porque a beleza, como Borges sempre disse, é sentida com o corpo todo. Se não somos capazes de nos arrebatarmos por qualquer modalidade do belo, teremos que lançar mão do sangue que ressoa em nós em nome do outro, porque todo corpo possui sua beleza inerente. Não existe rascunho de beleza, nossa sensibilidade é que precisa ser apurada e redesenhada para atingir a perfeição guardada em tudo, uma vez que é nas imperfeições que encontram-se os delírios joviais do amor. O atordoamento é o salto para a libertação da evidente beleza que está orgulhosamente a espera de olhos mais requintados para atingi-la em sua totalidade, completude esta que é alcançada pela aquisição do espírito amante que jaz encarnado noutras gerações mas que devidamente talhada ressurge no presente com um furor inacreditável, desloca massas e arde corpos como o diabo no inferno produz nossos mais intestinos pecados, porque é em nós que está Deus e o cramulhão.

Se fossem olhos quaisquer, diriam que ela é apenas uma mulher de olhos verdes, cujos cabelos castanhos claros escorridos nas costas contornam as sinuosidades de um corpo antes de menina, agora mais do que de mulher. Os olhos antes calosos, agora suavizados pelo encanto desta mulher, captam a beleza física óbvia para fundi-la à idéia de uma figura feminina atordoante. Percepção agônica para muitos, possível de provocar angústia e repulsa, mas para estes olhos que narram, ela simboliza uma espécie nunca divina, mas fundamentalmente humana. Se na superfície física os olhos ingênuos logo encontram contornos deliciosos como o chocolate, marca do sentimento de delírio interior, de cujo sabor os olhos se refestelam e lambuzam para além da razão, ao descortinar a superficialidade da prévia e ilusória visão, chego a um passo da humanização plena. Foge ao caráter, não é fruto apenas de uma personalidade que se definiu mais do que solidamente, nem mesmo do olhar e do movimento corpóreo que insinuam sensualidade e erotismo que nunca tangenciam a pornografia vulgar. É nos olhos que se encontra sua verdadeira beleza, porque muito além de serem sua janela da alma, eles encantam e estremecem a existência dos outros. Sem conviver com suas peculiaridades seríamos órfãos do mundo, pois teus olhos mais do que representarem a natureza humana e física na terra, simbolizam o sopro de vida e sensibilidade que pode ser ainda descoberto nos homens. Sem teus olhos, não haveria mais a chuva, os mar seria aprisionado na calmaria eterna, e nós, mortos-vivos, seríamos acometidos pela morte do sol, que melancolicamente caminharia entre todos os homens como um cadáver decrépito, disforme, opaco, sem um leve brilho.

Você, T. M., faz o leão conviver com as zebras, apazigua o ódio entre os homens com um breve olhar que extingue a ganância e a tristeza. Absolutamente em seus olhos reside sua vida e essência, sem beatitude, sem pureza, porque isto é coisa do diabo, uma vez que temos dentro de nós o sentido do corpo que é a carne. Convivemos como que travando uma batalha entre o bem e o mal, mas somos as duas entidades, justamente pela nossa imperfeição. É por isso que teus olhos emanam a vida, em todas as suas caras e bocas, expressões das mais diversas das quais é possível conviver para a eternidade. Aliás, é necessário para todo mortal este contato, como com qualquer obra de Picasso ou Monet, Dostoievski ou Shakespeare. Sua arte é o teu olhar: é nele que está a arte da feminilidade, ou melhor, o que é ser mulher.