15 novembro 2006

Primeiro Ato - Dioniso

Seria um dia qualquer essa segunda. Entretanto, morri, e agora ouço vozes que me perturbam a tranqüilidade aqui, onde achei que seria o não-ser. Há dois velhos e uma senhorita, além de uma quase morta idosa, que insistem para que eu volte à Rua do Meio, no interior deles. Não entendo o que dizem, suponho através dos movimentos que fazem com as mãos, creio que a me chamar. Eu, daqui, desse nada, onde tudo é incolor e indolor, sinto um feixe de luz do sol aquecendo parte de minha consciência. Não tenho corpo, sou um emaranhado de sensações e lembranças, como se os dias estivessem trancafiados em minha impossibilidade de perceber a intenção, devido ao meu estado de vazio. Nem mesmo o ar me acompanha por esses lados, estou mais comigo do que quando na terra me deixava ficar entorpecido de álcool sozinho no quarto dos fundos da pensão onde sempre morei. Recordações fugidias aparecem e correm, velozes como o vôo de um beija-flor. Não posso mais conceituar meus sentimentos, porque daqui apenas o passado inatingível me ocorre. De nada esqueço, cada detalhe me entope não sei que parte, só sei que de alguma maneira tendo a explodir. Algo será lançado para os ares, preciso de uma festa agora mesmo. Será possível chamá-los, uma vez que só eles me vêem? Creio ser uma virtude aproximar-me deles, assim, derrepente, este estranho caminho possa ser trilhado, porque aqui não há nada além da minha eterna memória.

Resolvi ir ao encontro deles. Já estavam em festa: ouvia gritos e urros por toda parte, além de muita comida e de bebida espalhada pelos cantos. Parece-me que eu estava deitado no centro do salão principal, onde todos ritualizavam alguma passagem, celebravam meus olhos que se abriam como o dia nascendo. E o dia estava realmente sendo criado, era aquele o instante da geração da terra, do homem, dos animais, dos rios e dos mares, estrelas e mulheres... Pude enfim respirar, reconhecendo um perfume que me vinha à lembrança mas que era irreconhecível no não-ser. Minha lenta respiração, cujos movimentos pulmonares seguiam sua tranqüilidade, era pura e bela, minhas virtudes escapavam pelos poros, sensação que contagiava o ambienta, provocando euforia. O perfume, bem, dele eu já ia me esquecendo, este sim foi o motivo da cantoria geral. Perceberam que todos se libertavam, corriam, podiam agora se despir das roupas e tornarem ao primitivo instinto dos animais: sentir, comer e procriar. Todos ali se puseram em espírito dionisíaco, banhando-se em vinho, lançando-se uns aos outros como eternos amantes, sem aguardar o futuro, para eles não havia objetivo, apenas viver.

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