19 julho 2010

Fragmento de livro - A chave de casa - Tatiana Salem Levy

Poucos dias depois da sua morte, o médico telefonou para saber como tinha sido a nossa volta ao Brasil, se estava tudo sob controle. Não, eu disse, não há nada sob controle. Não há nada mais que se possa fazer, nem eu, nem você, nem o melhor hospital do mundo. Ele vacilou, gaguejou, depois ficou em silêncio. Tive receio de ouvir minha condenação pela sua voz. Achei que ele fosse dizer que a culpa era minha, que eu havia transgredido as regras, deitado na cama ao seu lado, que não tinha usado máscaras nem luvas, que não havia passado álcool suficiente no catéter antes de injetar a medicação (lembra que quando saímos do hospital eles me treinaram para ser a sua enfermeira particular?). Achei que ele fosse dizer que se eu tivesse seguido uma por uma as suas indiações você não teria partido. Quando ouvi seu silêncio, tive a certeza de que ouviria a minha sentença: culpada. Mas não, o que ouvi foram palavras inesperadas, palavras doces e carinhosas. Ele tinha se envolvido, mãe, sua carapaça tinha dado lugar a um homem enternecido.

(Trecho do livro "A chave de casa", Tatiana Salem Levy).

A morte faz o médico homem. Ou pelo menos deveria fazê-lo.

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