16 outubro 2011

Tensão

Enquanto o parabéns acontecia, eu não conseguia bater palmas. Minhas pernas tremiam um pouco e não era possível manter a atenção em nada do que me diziam. Via todos se distanciando, mesmo que estivessem ao meu lado. A gente sabe quando a porrada virá – só não sabemos de onde, por isso aquele pincelzinho de angústia vai pintando os dedos das mãos de uma cor estranha e, sorrateiro, cobre a coluna, bem no centro das costas. A gente sabe, sim, a gente sabe.
Quase sempre deixava o celular no bolso. Porém, por obra das fantásticas empresas de telefonia, era obrigado a deixá-lo em cima da janela do quarto de visitas, porque era o único lugar que surgia, como mágica, o sinal. Além disso, esquecera de carregá-lo.
No meio da confusão, resolvi ir ao quarto e checar se havia alguma ligação perdida. Bastou que eu pegasse o aparelho: pronto, aquilo disparou a tocar. Por que eu sabia? Por quê? Não sou vidente, nem quero ser. Eu não olhava o nome no visor. Recusava-me a aceitar o óbvio. Fechei os olhos tentando evitar, mas me lancei numa cruzada insuportável de especulações, até chegar ao ponto que alguém, uma silhueta de gente, me enforcava com o olhar. Fui obrigado a abrir os olhos, o que fiz rasgando o tempo e minha visão: era você. E era para deixar de ser. Mecânico, pressionei o send e ouvi, em gritos sonoros de desespero:

- Por quê? Por quê? Por quê você fez isso comigo? Por quê?

Os porquês ecoaram múltiplos em tons de facas abrindo as costelas, uma a uma, de dentro pra fora. Espirrava-me em órgãos dilacerado no meu sangue multicolorido, porém seco e agreste, de tons escuros, enegrecidos. Via-me em uma roda gigante, sozinho, a girar, e girar, e girar, ininterruptamente, cada vez mais rápido, em uma capsula sem oxigênio, quando era-me dolorosamente nítido: os meus braços rompendo a pele, em bolhas pequenas; os músculos emergiam, fibra a fibra, como afiadas lâminas que arrebentariam o asfalto. O coro cabeludo arrancava-se, como se ganhasse vida, e partes do cérebro jorravam. Estive na imaginação como se nada fosse criado, mas tudo fosse vivo, como o choro de um bebê ao nascer. Vivenciei a mentira como se fosse a mais inocente verdade. Anestesiado, continuava ouvindo, em berros sem qualquer melodrama, pois me chegavam verdadeiros como nenhum outro som seria capaz:

- Por quê? O que eu fiz? Por quê? Como você pode fazer isso comigo? Me responde!!! Fala! Agora fala...

Eu não falava, não, não, nada daquilo realmente era físico, experiência. Tinha convicção que o irreal se tornara a realidade. O quarto, as paredes brancas desenhadas e escritas, o telefone, meus pés, minhas mãos, aquele celular: por favor, por favor, enfim eu tinha me transformado num quadro expressionista e surreal. Seria? Não. Do emaranhado, ouvi uma voz de tonalidade masculina, até perceber que um de meus amigos parara na porta do quarto, assustado, perguntando:

- Parceiro, o que é isso? Quer ajuda? Tudo bem?

Aquela voz me arrancou do quadro vanguardista. Saltei, desliguei o celular e soltei-o no chão, desnorteado. – Por quê? Eu me perguntava em voz baixa, naquele sussurro dos desabrigados que moram, mas nunca se sentiram em casa. Presenciei a construção do abandono, tanto que ali eu não era nada e estava completamente só, mesmo diante de tudo.

2 comentários:

Andressa disse...

Enquanto o parabéns acontecia, eu vi você se afastando sozinho para o quarto. Esperei. Sabia o que tinha que ser feito, sim, mas não poderia esperar mais um pouco? Eu não podia continuar ali, naquela sala, com todas aquelas pessoas que eu não fazia ideia de quem eram, mas cumprimentara com um sorriso estampado faziam alguma horas? Não. Devia ser feito, tinha de ser feito. Só que as minhas mãos continuavam repetindo o movimento mecânico de palmas e as pernas continuavam paralisadas.

Você podia ter ficado em casa hoje, não podia?

Abri então, um caminho até o quarto que me era tanto conhecido, contando cada passo e temendo ver o que eu sabia que veria. Toda a tarde eu tinha desviado meus olhares, que corriam para os teus feito imã, e que, infelizmente, eram correspondidos. Sentia meu
celular no bolso, quieto. O que eu esperava? Estava tudo certo, tudo decidido, um acordo tácico entre nós dois, separam-se as pessoas, as bocas, dividem-se objetos. Só as dores se compartilham. E as lágrimas.

Um desconhecido teria achado que você estava observando uma coisa qualquer pela janela, com o teu jeito distraído de sempre. Pena que eu te conhecia tão bem. Eu vi, pela primeira vez, a tua dor e a tua face escondida. Teu tormento. Eu senti a força que a mão apertava o celular, e o arrepio subia pelos membros estáticos. Meu grito estava sufocando a alma, eu queria cravar na tua carne as palavras afiadas como lâminas que eu tanto tinha treinado durante crises noturnas, no meu quarto frio.

O número estava ali. Só era preciso um toque.

Eu te senti, hoje. Eu te odiei e te precisei como nunca. E Enquanto tirava o carro do estacionamento, eu soube que nunca apertaria aquela tecla. Olhei pelo retrovisor e te vi voltando para a sala, sem nem me ver.

Anônimo disse...

Muito bom!